quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Um Cachorro no Armário

Um sorriso desenhou-se nos lábios do Sr. Portas ao avistar o Sr. Karpol surgindo de uma esquina suja, cercada por muros enegrecidos e construções decrépitas. Não seria possível precisar se o sorriso foi de satisfação, de alívio ou de escárnio. Há pessoas de rostos assimétricos e sorrisos tão imperfeitos que causam repugnância imediata até mesmo nos espíritos mais justos.

Ao avistar o rosto cinzento e inchado do Sr. Portas em frente ao velho prédio, o Sr. Karpol estremeceu de inquietação. O sorriso torto, a palidez desfalecida e principalmente, o olhar penetrante e ameaçador daquele estranho homem trouxeram à mente do Sr. Karpol um forte sentimento de insegurança Questionou-se por uma última vez se havia tomado a decisão correta ao comprar um imóvel naquela parte da cidade, em um prédio decadente e que estava muito próximo do abandono. Tais pensamentos foram logo obliterados pelo preço extremamente sedutor e pela prestatividade quase opressora do vendedor. No caso, o Sr. Portas. Esta prestatividade apresentava-se mais uma vez ao Sr. Karpol, desta vez sob a forma de uma pequena caixa de papelão, com dizeres estranhos e uma caveira estampada em um dos campos.

- Sr. Karpol, como vai? Achei que o senhor não viria pegar as chaves do apartamento. Hoje o tempo está muito ruim. Frio e vento!

O Sr. Karpol concordou que o vento estava de fato muito intenso. Permaneceu imóvel por alguns segundos, enquanto seu olhar era levemente desviado para um homem encapuzado que o encarava fixamente do outro lado da rua. Tornou a olhar para o vendedor quando este começou a falar novamente, batendo o indicador duas vezes na caixa:

- Comprei aquele inseticida que falei para o senhor. É o melhor sistema para matar baratas que existe. O senhor só precisa espalhar as bobinas pela casa, nos cantos, e em poucos dias a casa vai estar livre de baratas. Falando nisso, aqui está a chave do armário da cozinha. Talvez seja bom colocar uma bobina lá. As baratas gostam de aparecer nesses lugares.

De fato, o apartamento tinha um problema com baratas, que o Sr. Portas atribuiu a reformas no encanamento do prédio. O Sr. Karpol agradeceu pelo presente e segurou a caixa enquanto o Sr. Portas abriu a porta de entrada, que emitiu um grave ranger ao ser empurrada para trás. Os dois entraram e foram recebidos por um ligeiro odor de mofo e uma iluminação deficiente, que projetava multiplas sombras nas paredes conforme subiam as escadas. Apesar de ser um prédio de sete andares e vários apartamentos, chamou a atenção do Sr. Karpol o insólito silêncio do local. Quando vendedor e cliente finalmente pararam em frente ao apartamento 501, no quinto andar, o celular do Sr. Portas tocou. Ele atendeu, falou algumas palavras, desligou e disse ao Sr. Karpol:

- Lamento, não poderei ficar. Um imprevisto urgente surgiu. Tome, aqui estão as chaves. A dourada é a que abre esta porta. Fique também com o meu novo cartão. O telefone da minha imobiliária mudou. Qualquer coisa, é só ligar. Adeus.

O Sr. Karpol mal teve tempo de exigir mais explicações para o vendedor, pois o Sr. Portas retirava-se a passos largos em direção à escada. Assim, ficou parado segurando a chave do armário da cozinha, a caixa com o inseticida, o molho de chaves do apartamento e um cartão de visitas. Não tendo outra escolha, resolveu entrar. Como não ira dormir no local naquela noite, o plano era apenas olhar rapidamente os cômodos e ir embora.

Colocou a chave dourada na fechadura, abriu a porta e acendeu a luz. A sala de estar, os quartos e o banheiro estavam exatamante como da última vez. No entanto, ao aproximar-se da cozinha, o Sr. Karpol observou com espanto que um elevado número de baratas caminhava pelas paredes. Ele sabia que o apartamento tinha baratas, mas o número de insetos causou-lhe um inesperado terror. Quando entrou na cozinha, observou com asco que o armário era o epicentro da praga. Baratas graúdas entravam e saíam pelas frestas em grandes quantidades, para o seu total desespero. Estando com o sistema de detetização que o Sr. Portas havia lhe dado em mãos, o Sr. Karpol decidiu que era melhor começar a exterminá-las desde já. Colocou a chave do armário com muito esforço no buraco da fechadura, tentando não ser atingido pelos insetos. Ao destravar a porta, puxou rapidamente a maçaneta e recuou, tentando proteger-se de um possível enxame de baratas. Para seu mais absoluto pavor, a cena que encontrou foi ainda mais repugnante do que uma nuvem de insetos: uma única barata solitária deixava a boca de um cadavérico cão de guarda, que jazia morto dentro do armário da cozinha.

O Sr. Karpol deu um salto para trás e sentiu seu estômago embrulhar. Correu até a sala de estar para retomar o fôlego. Resolveu ligar imediatamente para o Sr. Portas, exigindo explicações. Tirou o celular do bolso e discou o número no cartão de visita, mas ninguém atendia. Após repetir a discagem várias vezes sem obter sucesso, desistiu. Agachou-se então no meio da sala - ainda sem móveis - e respirou fundo. Descobriu, com grande frustração, que o preço do imóvel era demasiadamente barato, para que houvesse nenhum segredo insólito estivesse por trás do negócio.

Passado o efeito inicial do impacto grotesco que a cena provocara, o Sr. Karpol resolveu retornar à cozinha, para certificar-se se aquela visão havia mesmo sido real. Novamente, observou aterrorizado as baratas e o cão morto, mas desta vez atentou para um detalhe que ainda não havia visto. Um feixe de luz iluminava uma coleira metálica no pescoço do cão, com o endereço daquele prédio gravado, seguido do número 101.

Após aquela confirmação, o Sr. Karpol resolveu sair do apartamento o mais rápido possível. Trancou a porta, desceu as escadas apressadamente e parou diante da entrada do prédio. Pegou o molho de chaves e tentou abrir a fechadura, chave por chave, até que ouviu o ranger metálico da porta ressoar mais uma vez. Quando preparava-se para deixar o prédio e seguir pela rua, o Sr. Karpol observou novamente o homem encapuzado, que continuava parado do outro lado da rua sem mover o olhar. Sentiu um calafrio de medo correr-lhe a nuca, e decidiu voltar para dentro do prédio.

Sem saber o que fazer, o Sr. Karpol ficou parado no andar térreo, andando de um lado para o outro. Ligou novamente para o número no cartão de visitas, e novamente ninguém atendeu. Chamou por auxílio em voz alta, e começou a se dar conta de que o prédio poderia estar vazio. O pânico começava a tomar conta da sua mente, quando, de repente, avistou de relance a porta entreaberta de um dos apartamentos. Era justamente a porta do apartamento 101: o número na coleira do cão morto. Bateu na porta duas vezes, e não obtendo resposta, resolveu entrar sorrateiramente.

O apartamento era cuidadosamente arrumado para um prédio decrépito como aquele. Tudo parecia estar em ordem, e a luz que emanava de um televisor ligado dava a impressão que alguém estivera ali há pouco tempo. O ruído de estática do aparelho dessintonizado era as vezes sobreposto por ruídos surdos de batidas que pareciam vir do subsolo. O Sr. Karpol saiu da sala de estar e seguiu em direção a um corredor central, onde os ruídos pareciam aumentar. Quanto mais caminhava, maiores e mais estranhos ficavam os barulhos. Confundiam-se entre gritos aterrorizantes e pancadas. Seu coração começou a bater mais forte. Ao observar uma passagem à esquerda do corredor, percebeu que ela encerrava em uma escada direcionada para o subsolo, de onde os ruídos pareciam surgir. Quando parou para pensar se deveria sair dali imediatamente ou descer a escada, o Sr. Karpol ouviu passos rápidos no corredor. Antes mesmo de poder virar para trás, levou uma forte pancada na cabeça, e sua visão foi tomada pela escuridão.


O Sr. Karpol acordou em meio a uma sinfonia de latidos ferozes, sentido um insuportável odor de carne em decomposição. Estava amarrado a correntes contra a parede de um poço fétido e escuro. Na sua frente, cães de guarda como aquele que viu no armário da cozinha rosnavam e pulavam ferozmente contra as grades de uma jaula. No alto do poço, o Sr. Portas acompanhava tudo com extrema placidez, segurando um controle remoto. Antes de apertar o botão que abriu a jaula dos animais - os quais não tardaram em atirarem-se a dentadas sobre o Sr. Karpol - o Sr. Portas não deixou de dar exatamente o mesmo sorriso com o qual cumprimentou seu cliente na porta do prédio.

Autor: Hilton Moreno Lima (estudante de Letras)

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

A descoberta do mundo

O título acima não é uma cópia descarada de obra da Clarice Lispector. Não! É, certamente, uma homenagem à escritora e uma homenagem àqueles que amam escrever, simpatizam com a idéia ou a temem muito intensamente. Por quê? Porque no mundo da escrita cabemos todos nós: os apaixonados, os simpatizantes, os iniciados e os de-nariz-torcido. E porque cabem seres e suas histórias, opiniões, pesquisas e palpites, cabem a tecnologia, a aula, o laboratório. Em outras palavras, cabe um Palavratório. Sim! Um espaço virtual - cujo batismo nos faz lembrar Guimarães Rosa - dedicado à produção textual de estudantes da UFRGS, no caso, dos alunos desta que vos fala, idealizado para divulgar os trabalhos produzidos nas disciplinas de Leitura e Produção Textual e de Língua Portuguesa. Assim sendo, constituirão o recém-nascido Palavratório textos de autoria de estudantes dos cursos de Letras, Administração, Ciências Contábeis e Atuariais e Engenharia de Produção da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mas o estímulo não se restringirá aos alunos de tais disciplinas. O Palavratório estará aberto aos visitantes de todos os pontos e portos do mundo.E, por falar em mundo, como ensaio de aula, encerremos esta abertura com Clarice. Em sua obra, a autora de A Descoberta do Mundo, no texto Escrever, Humildade e Técnica, generosamente nos ensina: "Humildade com técnica é o seguinte: só se aproximando com humildade da coisa é que ela não escapa totalmente".Bem-vindos, autores e leitores ao exercício da humildade que nos exigem a escrita e suas experimentações!