terça-feira, 14 de julho de 2009

Aquela noite...

...foi mais uma noite abafada no verão de Manaus. O céu estava encoberto por uma densa camada de nuvens que parecia colocada ali de propósito, como que para esconder as estrelas. O clima úmido também não ajudava. Após um dia de sol forte e temperatura alta, o temporal que caiu ao fim da tarde não amenizou em nada o ar sufocante que pairava sobre a cidade.

Naquela noite, como de costume, eu e minha namorada Jéssica fomos ao cinema da rua Cristo Rei, na sessão promocional das 22 horas. A história que quero contar aconteceu na volta do encontro, logo após eu ter deixado a Jéssica no portão de casa. A rua na qual ela mora é escura e cheia de terrenos vazios, e eu adoro voltar caminhando de lá. É bom para colocar os pensamentos em ordem. Eu mal havia riscado um fósforo e o estava aproximando do cigarro que pendia na minha boca, quando algo estranho no céu desviou a minha atenção.

Algumas dezenas de metros a minha frente, as nuvens se abriram lentamente, em um formato quase circular, dando passagem a uma luz fraca e roxa. Aos poucos, pude distinguir uma forma. Por trabalhar durante o dia como transportador de cargas no Aeroporto Eduardo Gomes, posso dizer que conheço todos os modelos de aeronaves que transitam pela região. Igual àquela, entretanto, eu nunca havia visto. O objeto era parecido com um Zeppelin achatado e possuía asas, uma em cada lateral, como as de um avião comum. A carcaça era feita de um metal esverdeado e parcialmente coberto por manchas escuras, o que lhe dava um aspecto “vivo”. Em cada uma das asas e também nas partes dianteira e traseira do corpo da nave havia uma espécie de turbina, posicionada na vertical. Era dessas turbinas que a luz roxa emanava, ficando mais fraca à medida que o contato com o solo se tornava mais iminente.

Fui desperto do estado de paralisia, no qual me encontrava, por uma forte dor em minha mão direita: o fósforo que eu havia riscado queimara até próximo do fim, e sua chama já atingia meus dedos. Sacudi a mão com violência, como se isso fosse aliviar a dor, e voltei a olhar para o céu. A nave, porém, havia descido até quase tocar a vegetação de um terreno abandonado, cerca de 20 metros a minha frente. A luz de um poste próximo brilhou forte por alguns instantes e depois se apagou com o estouro da lâmpada, deixando completamente nas sombras a região na qual o objeto pousara.

Um holofote de luz forte e branca se acendeu na nave, cegando meus olhos. Imediatamente levantei o braço e tentei proteger minha visão com a mão. Um som de ar comprimido sendo liberado se seguiu e, acompanhado do ranger de engrenagens. Apesar de não enxergar nada, tive a certeza de que uma porta se abrira. Quando o barulho cessou, pude escutar duas ou mais vozes bem agudas conversando em algum idioma indistinguível.

O silêncio da noite, que até então permitia que eu ouvisse as vozes, foi interrompido pelo ruído de muitos motores. E os motores estavam se aproximando rapidamente pelas minhas costas. Virei-me para ver o que se aproximava e vi três ou quatro pick-ups negras chegarem a alguns metros de onde eu estava e estacionarem. Quatro homens com uniformes do exército desceram de cada carro. Também chegaram dois Jeeps grandes, com algum tipo de metralhadora ou outra arma pesada sobre suas caçambas.

De um alto-falante em um dos carros, uma voz pediu que a nave desligasse o holofote e se identificasse imediatamente. Tudo o que se ouvia então era o ronco dos motores dos Jeeps, que ainda estavam ligados. Com um gesto, um dos homens ordenou que os motores fossem desligados, o que acoteceu imediatamente. Identifique-se agora, ou seremos obrigados a abrir fogo, Disse mais uma vez a voz ao alto-falante. Como não houve resposta, o homem que até então estava dando as ordens selecionou quatro outros homens para irem até a nave. Eles foram.

Achei que era hora de me aproximar do comandante da operação e reportar tudo o que vi. Vá para casa, garoto, Foi a resposta que obtive dele antes mesmo que eu pudesse terminar de falar, Você não sabe com o que está lidando. Eu estava começando a argumentar quando a atenção de todos, inclusive a minha, se voltou para o som de tiros e gritos que vinham da nave. Alguns segundos depois, tudo era silêncio novamente. Em meio à toda aquela luz, a silhueta de um homem podia ser vista. Um dos quatro homens que haviam sido mandados até a nave estava retornando. Ele estava mancando, seriamente ferido e com a roupa rasgada e cheia de sangue. Atirem, acabem com esses desgraçados, Ele disse com raiva, antes de cair com o rosto no chão.

Nesse momento, os holofotes se apagaram, revelando os corpos dos outros três homens caídos, um pouco mais à frente. Na distância entre os corpos e a nave, cinco criaturas humanóides, com aproximandamente dois metros de altura, pernas finas e olhos negros e redondos, estavam nos observando atentamente. Quatro empunhavam em sua mão direita uma espécie de disco de metal dentado, como o do uma serra circular. O quinto segurava uma estranha arma, do tipo que se vê em filmes de ficção científica.

Atirem, atirem, seus idiotas!, Gritou o comandante ao meu lado, e os homens que operavam as armas no Jeeps abriram fogo. Os tiros, entretanto, pareciam perder sua força à medida que se aproximavam do alvo, caindo inofensivamente aos pés dos extraterrestres. Quando os disparos cessaram, a criatura que empunhava a arma gritou e todos os outros lançaram seus discos. Destes, três atingiram soldados próximos à mim e retornaram as mãos de seus donos. O quarto disco teria me decepado se o comandante não houvesse me empurrado na hora certa. Caí no chão e, assustado, me arrastei até atrás da pickup, onde sentei com as costas no pára-choques, tremendo. Então, mais tiros foram disparados.

Não consigo precisar quanto tempo fiquei ali sentado, ouvindo tiros, gritos e o zumbido daqueles discos voando. Aos poucos, porém, o silêncio foi tomando conta da noite novamente e, quando não havia mais qualquer som, achei que era seguro sair do meu esconderijo. Levantei-me e dei a volta no carro. A primeira coisa que vi foi o corpo do comandante estendido no chão. Ele ainda segurava uma metralhadora, e o pavor estampado em seu rosto permanecia. Abaixei-me, peguei a arma de suas mãos e a segurei desajeitadamente, apontando para a frente.

Quando avancei alguns metros em direção à nave, pude ver os corpos mutilados dos outros soldados. Mais adiante, vi também os corpos de quatro alienígenas. Com muito cuidado, me aproximei das criaturas, a fim de dar uma boa olhada em seus corpos. De repente, o extraterrestre que estava caído a minha esquerda soltou uma espécie de uivo e, levantando o tronco do chão, agarrou minha perna. Sem antes pensar, apontei a metralhadora para a criatura e pressionei o gatilho. Não consegui segurar firmemente a arma, e a parte de trás dela me atingiu repetidamente as costelas. Ainda assim, a rajada de tiros que atingiu o peito e a cabeça da criatura foi suficiente para fazê-la tombar definitivamente.

Foi só então que reparei que o quinto alienígena, aquele com a arma estranha, observara todo o ocorrido. Ele estava de pé sobre a rampa de acesso à nave e, por mais estranho que fosse, ele estava sorrindo. A criatura disse alguma coisa e, antes que eu pudesse me mexer, levantou sua arma e a disparou contra mim. A última coisa que lembro foi sentir um forte impacto, como se tivesse sido atingido por um caminhão.

Acordei não sei quanto tempo depois, com o som de sirenes se aproximando. Levantei assustado, ao lembrar do que havia ocorrindo na noite passada. Entretando, o sol que já estava nascendo iluminava apenas alguns terrenos vazios a minha volta. Não havia corpos, não havia espaçonave, não havia pickups. Tudo parecia normal, e por um momento cheguei a acreditar que tudo não passara de um sonho.

Avistei, porém, em frente a uma casa próxima, um grande aglomerado de pessoas conversando em voz alta. Lá, estavam os carros de polícia cujas sirenes haviam me acordado. Caminhei até lá e, a fim de dar uma olhada mais de perto, fui abrindo caminho entre os curiosos. Avancei até encontrar uma daquelas fitas amarelas da polícia, onde parei e levantei os olhos. Um enorme objeto caído do céu havia atingido aquela casa, reduzindo-a a escombros. Era uma das turbinas da nave da noite anterior, e eu a reconheci de imediato. Minhas pernas ficaram bambas, minha cabeça tonta, e eu desmaiei.

Autor: André Rath Rohr - estudante de Engenharia der Produção (UFRGS)

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Sobre meus amores

Sempre os amei, sempre. Desde o dia no qual mamãe disse que eu teria uma irmãzinha, a amei, aguardei ansiosamente os meses de gestação de mamãe até que a maninha nascesse. Era linda, um lindo bebê e, desde o momento em que a vi nos braços de mamãe, tive a certeza de que ela seria para sempre minha, que me amaria tanto quanto eu a amava e que faria tudo por mim, assim como eu faria tudo por ela.

E assim foi - pelo menos era o que eu achava! Eu a protegia na escola, nenhum colega ousava debochar dela ou magoá-la, em casa a mesma coisa, nem mamãe nem papai a castigavam, eu sempre a defendia, achava outra explicação, e quando necessário, assumia a culpa por ela, afinal a amava e quando eu precisasse dela, ela estaria lá.

O tempo passou, mas nunca ficamos muito longe. Do meu casamento ela foi madrinha e quando Maria Francisca nasceu, retribuiu me convidando para ser madrinha de batismo da pequena Chica, que nos trouxe vida, alegrou a todos nós, pois, após tantos anos tentando engravidar, fazendo tratamentos, gastando o que podíamos e o que não podíamos, nunca consegui ter um bebê até minha sobrinha nascer. Ela também era minha. Cuidava dela à noite, quando tinha cólica, quando ficava doente... Quando queria qualquer coisa, eu ia correndo comprar. Antônio, meu marido, também a amava e cuidava dela melhor do que o próprio José (ex-marido da mana). Como nunca desconfiei?

Tínhamos uma empresa e eu sempre cuidei de tudo, mas há alguns meses as coisas começaram a ir mal, muito mal, contraímos dívidas e, para pagá-las, fizemos empréstimos, os quais nos acarretaram mais dívidas. Cada vez que tentávamos nos reerguer, mais afundávamos. Comecei a emagrecer drasticamente, eu não conseguia nem sequer pensar em baixar o padrão de vida que me esforcei durante tanto tempo para conquistar. Como diria não à pequena Chica? Como explicaria a minha irmã que teríamos que nos desfazer dos imóveis? Como?

Naquele momento, achei que o pior já havia acontecido, até que descobri que eles queriam me internar numa clínica. Mana e Antonio alegaram que eu estava muito estressada e esta seria a única solução no momento. Logo eles, a quem dediquei toda a minha vida, me traindo, me machucando me fazendo sofrer daquele jeito. E eu achei que era o máximo a que poderiam chegar, mas não!

Depois que a mana saiu, a discussão continuou com meu marido até que ele disse o que eu nunca poderia imaginar, nem no meu pior pesadelo. Disse-me que havia alguns anos, quando viajei a negócios, ele – o homem que eu mais amava, iniciou um caso com a minha irmã – a pessoa que mais amei e a quem me dediquei — e fruto desse caso nasceu minha sobrinha. Não, não foi uma transa, ou duas, foi um caso de um ano que só terminou com o nascimento da Chica.

Ele contou tudo. Narrou detalhes que eu não precisava ouvir, no entanto, ouvi calada. E calada permaneci até que ele também se calasse, até que ele deitasse na cama, até que ele adormecesse.

Fui à cozinha, peguei a faca que julguei mais perfeita para o que eu pretendia, caminhei até o quarto e dei uma facada em seu pescoço, mas ele continuou a respirar. Peguei meu travesseiro e coloquei em seu rosto até que ele não movesse mais nenhum músculo, até que tivesse certeza de que ele nunca mais me magoaria, que jamais me faria sofrer daquele jeito.

Lavei e guardei a faca, voltei ao quarto e me sentei na poltrona, de onde podia ver seu corpo e seu rosto, rosto que tantas vezes beijei, corpo que tantas vezes amei. Como pôde me trair? Logo eu, que tanto o amava? Logo com quem eu mais amava, minha irmã, que tantas vezes defendi e sempre protegi? Eu não podia deixar assim, não podia!

Dormi no quarto de hóspedes. Levantei-me no horário habitual, coloquei a faca na bolsa e fui à empresa. Quando perguntaram por ele, disse que viajara para tentar vender um apartamento. Ninguém estranhou. Por que estranhariam?

Trabalhei normalmente, peguei Chica na escola e jantamos em sua lancheria preferida. Depois fomos para o apartamento de minha irmã, dormiria lá para não dormir sozinha, aliás, como sempre fazia quando meu marido viajava. Claro que eu iria me proteger, claro que eu iria cuidar para que a minha irmã não me traísse, não me magoasse, para que ela nunca mais me fizesse sofrer, para não doer mais, nunca mais. Abri a bolsa quando elas adormeceram e fui até a mana, mas ela acordou na primeira facada de raspão e gritou para Chica pedir socorro. Sei que me perguntarão por que matar uma inocente criança, acreditem, eu a amava mais que qualquer um, mas se a deixasse viva, deixaria a prova dos anos de traição, de ter sido feita de idiota, de ter me esforçado tanto, protegido tanto, cuidado e amado tanto pessoas que nem por um segundo pensaram em mim, na minha dor.

Após ter dado algumas facadas na mana, fui até a porta onde estava Chica prestes a gritar e esfaqueei a minha pequena. Na primeira facada, senti tanta dor que quase desisti, mas era preciso continuar, a mana tinha que sofrer tanto quanto eu estava sofrendo. Além da dor física, a dor de ver a filha que ela gerou sendo morta pelas minhas mãos. Quando Chica parou de respirar voltei até a mana e terminei de esfaqueá-la, uma facada em mim, outra nela, uma em mim outra nela...

Sabem o que é mais estranho? Ainda não parou de doer.

Autora: Loiva Costa Santos - estudante de Letras (UFRGS)

O quarto de pedra

Despertava - e parecia impossível crer que havia conseguido dormir naquelas condições - deitada no chão de um quarto úmido e frio, todo feito de pedra; seus pés e mãos estavam amarrados em estacas de metal cravadas no chão, em quatro dos vértices de um pentagrama desenhado a giz, e a cabeça ficava no quinto vértice, o mais isolado de todos; pernas abertas em tal ângulo que lhe fisgavam os músculos no joelho e perto da bacia - mas, por algum motivo, a dor era uma lembrança, algo distante, que a mente tentava esquecer. A mente, aliás, estava confusa.

Era difícil recuperar a razão naquele breu, rompido apenas de leve por uma luz de vela que bruxuleava na cabeceira de uma cama ali perto. E, no canto mais iluminado, próximo à vela, dançava a sombra de um cabide, conforme o balanço da chama, onde estavam pendurados, segundo podia concluir pela forma das sombras, um sobretudo e uma cartola - e esta, até onde as densas trevas permitiam perscrutar, parecia ser toda a mobília do quarto sombrio. Uma cama, um cabide. E o pentagrama desenhado no chão.

Ela sentia o frio das pedras penetrar-lhe pela camisola e congelar-lhe as costas e a bunda. Aparentemente, estava sozinha, mas sentia uma presença no lugar, algo como o calor do hálito de uma fera ou a eterna perseguição de olhos ocultos. Qualquer som, por mais baixinho que fosse, reverberava com força nas pedras do quarto vazio - e este detalhe deixava a atmosfera ainda mais pesada. Ouviu um barulho de torneira enferrujada sendo aberta. As paredes guincharam quando a água começou a mover-se pelos velhos canos da construção, que há muito tempo não eram usados.

Imediatamente, e sem que pudesse controlar, os pêlos dos braços elevaram-se num arrepio. Pouco depois, o mesmo som agudo de torneira se repetiu, e o barulho de água cessou. Alguma coisa soou como uma porta rangendo e depois Pou!, a porta bateu. Passos ao longe. Stepstepstep, botas, cada vez mais perto, e a barulheira faria um desavisado crer que um exército inteiro marchasse no aposento ao lado.

Seus olhos já estavam acostumados com a escuridão, mas ainda assim o campo de visão era muito limitado pelo negrume em que o quarto estava afundado. Acompanhava todos os acontecimentos com os ouvidos. Depois de breve silêncio, ouviu um barulho de chave girando e uma porta abrindo, muito próximo de si, deixando um facho de luz entrar pela fresta, vindo do aposento ao lado. Um vulto passou pela porta, que foi então fechada, escondendo a luz e envolvendo tudo novamente no escuro.

Algo esquivou-se sorrateiramente pelo quarto, criando um suspense tão denso que até os pensamentos foram silenciados - mas falar em silêncio total é exagero, pois mesmo nos lugares mais inóspitos e improváveis o universo se encarrega de produzir algum ruído. Até mesmo no vácuo - e boto meu pescoço à prova contra todos os físicos do mundo - poderíamos ouvir este som tão aterrador que nos sai de dentro, e que agora soava como um tambor pelo quarto de pedra onde ela esperava o tempo vagaroso revelar-lhe o destino: Tumtum. Tumtum. Tumtum, o coração ribombava acelerado. Um leve vento acariciou-lhe os cabelos, e ouviu um barulho de fósforo sendo riscado.

Perto dela estava agachado um homem. Apesar do contorno mal delineado pela luz tênue que vinha da cabeceira e do fósforo aceso em suas mãos, era possível perceber que ele acendia outras velas dispostas ao redor do pentagrama. Logo, a luminosidade do quarto tornou-se significativamente maior - e lá estava, nitidamente, agachado perto dela um homem de meia idade, mãos apoiadas nos joelhos e oh meu D....

- Mas... eu conheço você! - disse a garota. O homem acenou positivamente com a cabeça, a barba grisalha brilhou na escuridão, mas não proferiu palavra.

- Quem...???? - tentou novamente a garota.

- Calma, querida, você vai recuperar a consciência aos poucos. Não há necessidade para apressar-se, já que o tempo não está correndo mais para mim ou para você.

- Como assim? Uh! Você pode me soltar? Me ajude...
Em resposta, o homem soltou uma gargalhada retumbante.

- HOHOHO! Não posso. Faz parte do ritual. Você precisa sair sozinha.
Ela se debatia, tentava livrar-se das amarras à força.

- É impossível. Parece que alguma coisa sobrenatural me prende a este chão gelado, a estas estacas.

- Hohoho! Com certeza, minha querida, o seu corpo está preso. O meu também está - grudado intimamente às pedras do quarto ao lado.

- Como é?

- Você precisa livrar-se dele. Saia do corpo, deixe a mente conquistar a independência merecida.

- Então você é...?
O homem acenou com a cabeça, interrompendo-a gentilmente.

- Sim, ectoplasma. Vamos, garota, não viemos até aqui por nada. Poucos são aqueles que têm a oportunidade de visitar o verdadeiro caos.

Algumas lembranças eram, dose a dose, injetadas novamente em sua consciência. Aos poucos, lembrou-se da vida verdadeira, dos estudos de ocultismo, das leituras proibidas, dos contatos com entidades de além-mundos, mas nunca, nunca em sua vida de ciência profana, nunca em seus exercícios obscuros, esteve tão perto de, ela mesma, ser uma criatura liberta do espaço e do tempo. Estava deitada no centro do pentagrama, e com um pouco de concentração poderia deixar seu corpo para trás, e vagar com a alma pela eternidade.

E este homem, o mestre taciturno de nariz aquilino, estava estranhamente bem-humorado no momento - provavelmente por contemplar os progressos da sua mais louvável discípula - e seus os olhos vibravam de orgulho enquanto observava um fluído branco insinuar-se pela escuridão, saindo vagarosamente dos olhos, do nariz e da boca da menina, para aos poucos ganhar a forma da dona - a verdadeira materialização de sua alma.

- Magnífico! Você evolui muito rápido. Eu mesmo demorei muito tempo para aprender as sutilezas do ectoplasma. Minhas primeiras manifestações eram aberrações disformes, longe de minha verdadeira aparência. A sua está perfeita!
O ectoplasma da garota sorriu com o canto dos olhos. Era difícil de controlar a própria forma, e alguns membros iam perdendo as características conforme ela perdia a concentração. Mas, mesmo assim, estava saindo-se realmente muito bem com sua forma etérea, aprendendo inclusive a controlar seus movimentos - e deixou que ela se movesse até a janela. Nevava lá fora, e algumas carroças tentavam encontrar caminho entre os acúmulos de neve.

- Uau! Onde estamos? Quando estamos?

- Quando e onde a Srta. quiser. Estas perguntas já não lhe servem mais, pois você já não faz mais parte da linearidade de eventos que aparentemente constitui o tempo. Devagar, com mais experiências deste tipo, você vai aprender a viver no caos, que é essência do próprio universo, e a vida comum já não lhe fará mais sentido.

- Você quer dizer... estou fora... além dos limites dos meus 5 sentidos?

- Sim, teoricamente a Srta. está. - respondeu-lhe o homem num suspiro. Mas ainda não aprendeu a ver o mundo dessa maneira. Os teus sentidos ainda percebem apenas o que querem perceber.

A garota, intrigada, continuou a andar pelo quarto. Passou as mãos pelas paredes e sentia a própria vida pulsando no fundo das pedras ancestrais. Não conseguia entender por que este quarto, a cama, os odores, porque tudo isto era tão familiar - como se um pedaço de sua alma estivesse preso entre aquelas 4 paredes. O ambiente todo lhe causava uma sensação muito profunda de nostalgia, de algum momento já vivenciado. Achou por bem contar isto ao homem:

- Tenho uma sensação esquisita. Me sinto muito familiarizada com este lugar.
O mestre sorriu.

- Não há nada de errado nisto. Este era o seu quarto.

- O meu quarto?

Estralando os dedos, o homem fez as velas queimarem com mais voracidade, o que aumentou a luminosidade. Então, ela reparou em algo que lhe havia passado despercebido: na cama, uma garotinha dormia um sono infantil, numa serenidade própria da consciência limpa que apenas as crianças possuem. Era ela. Ela própria.

Um século atrás, em outra vida, em outro corpo, a mesma alma. Ambas dividiam a mesma alma, e este pensamento perturbou profundamente a garota do pentagrama. E perturbou também a pequena garotinha, que acordou de sobressalto com os olhos esbugalhados e insanos fitando a escuridão.

Autor: Gustavo Matte - estudante de Letras (UFRGS)

Capítulo sobre olhos e janelas

Cá o agora. Ora o acúmulo da hora. As cortinas da visão embolorando a nitidez das formas, embolotando-se em rugas – rendas – impermeáveis à luz. As pálpebras da casa cerradas, como que para nunca mais; não querem decerto expor as cataratas impregnadas no que outrora era o mais vivo cristalino: receptáculo da poesia nascente, quando os grilos noturnos calavam e os primeiros acordes do galo convidavam “acordem, lá vem o artista da aurora, venham apreciar as cores de sua tela, abram as suas almas, abram as suas janelas”. Apesar das dezenas de anos, lembro em detalhes do que testemunhei aqui ainda jovenzinha.

Senhora partiu, sem hora para voltar, também nunca a teve para a ida. Levou junto a vida; as cortinas começaram a pesar – depois de um mês – o alvo olhar partido de meu tio acusava sua providencial despedida... Desbotava-se gradativamente o alvorecer, até o dia em que as venezianas não encontraram razão e a casa adormeceu junto com o tio. Sob uma porção de terra e sobre uma porção de sonhos esfarelados descansou o cadáver da saudade.

Desta feita aprendi que a saudade pode ser algoz de si mesma: encontrei aquele apelo em letras sinceras e sem prumo, um pedido que amarelou na gaveta da cômoda. Eu não conseguiria lê-lo até o final, os traços dificultosos embaralhavam-se. Apenas a última frase estava legível “venha para casa, Senhora, por favor” – solucei – meus olhos cobriram-se por uma tímida cortina líquida salgada que goticulou; uma gota para cada letra e cada uma se desmanchou. Foi uma poeira em minúsculas partículas dançantes que seguiam o rastro de um fino raio de sol – o único dentro da casa – enfiou-se por um buraquinho no vidro que apareceu naquela manhã de despedida: ao passar pela porta do quarto, ouvi o som delicado de vidro se partindo, percebi um buraquinho na vidraça e a imobilidade de meu tio na cama.

Entrei movida pela curiosidade; peguei a mão de meu tio que gelou em três segundos, ele tinha acabado de sair por aquele buraquinho. Eu fiquei com o silêncio e a certeza de que o pedacinho da vidraça foi a única lágrima que a casa chorou. Aquelas palavras eram o resto de alma de meu tio que ele trancou na gaveta como havia se trancado na memória, agora livres saíam do sepulcro pelo mesmo caminho que ele saíra. O fio dourado e brilhante foi-se apagando com os farelos da última frase se indo por sua linha. Meus olhos já secos, hipnotizados, não piscavam, e, quando o espetáculo no lado de dentro da casa terminou, foram levados a acompanhar o que aconteceria do lado de fora espiando pelo buraquinho do vidro. Senhora.

Qualquer um diria que ainda era vivo e alegre o jardim, com suas flores de tantas cores, mal saberia que era regado com lágrimas de meu tio. Eu olhava para ele por aquela fenda e em algum ponto entre as flores a vi. Foi por um instante, não sei por quanto tempo, à sombra do crepúsculo, meus olhos congelaram naquela imagem: ela nunca havia dado notícias, nada se sabia, nem o porquê; o que acusava sua saída voluntariosa era o sumiço de uma pequena valise e alguns pares de roupas, nada mais.

Foi com o passar dos dias sem volta que sua ausência tornou-se certeza. Agora ela estava ali, entre as flores salgadas do jardim, olhava para a varanda. Eu não sabia dos laços, do afeto profundo daquela amizade entre eles, dos sentimentos que extrapolavam os limites do tocar, do olhar – se ela, um dia, partiu sem avisar, naquele fim de tarde eu encontrava as pistas de suas razões. Ela estendeu os braços e vi meu tio descer as escadinhas da varanda. Ela atendeu seu apelo. Quando consegui fechar os olhos por dois segundos não mais os vi. Voltei o olhar para dentro da casa, era lúgubre e fria. Na epiderme poeirosa da vidraça tatuei seus nomes como eu lhes chamava “tio e Senhora”; naquela noite saí sem avisar a casa.

As lendas preservaram a solidão da casa que agora me encara pálida: toda noite na varanda brilha uma luz tênue. Os poucos vizinhos que moram à distância ao perceber o fato, acreditaram que pudesse ter sido invadida e foram verificar; ninguém conseguiu destrancar a porta ou as janelas e também não havia lâmpadas na varanda, acabaram por acostumar-se com uma luzinha acesa até a hora de dormir. Ao entrar na vila ouvi essa história pela boca de um menino e de uma menina que, com seus pequenos olhos arregalados, ainda lembrou as flores intactas e coloridas do jardim que ninguém cuida. Trouxeram-me até o portão, incrédulos que eu morei ou moraria aqui novamente, deixaram minhas malas e saíram correndo de pavor – decerto me tornarei a velha bruxa da vila.

Agora nós; eu quero vê-la, casa de minha infância, quero que me veja; vim abrir nossas janelas, desempoeirar nossas almas. Entro pela porta lateral, a mesma pela qual saí, cheiro de terra, primeiro um bafo, depois uma friagem; as tábuas rangem com as pisadas, são cantos de boas vindas. Vou ao quarto que era do meu tio, a memória sépia induz meu olhar para o furo da vidraça e lá estao não somente o furo, mas os traços tatuados na poeira, intactos – é apenas nas suas linhas que ainda se pode ver o vidro. Abro a janela para que o dia entre novamente na casa. Sem dificuldades as venezianas desemperram e o clarão que invade o quarto é tão forte que fico cega por alguns instantes – mais tarde eu lembraria esse momento sentada na velha cadeira da varanda assistindo o azul celestial alaranjar no horizonte até enegrecer por completo – quando pude voltar a ver, a casa estava viva novamente, as cortinas dançavam esvoaçantes, as paredes tinham cor, a poeira sucumbiu à claridade e no vidro, novamente cristalino, os traços de seus nomes permaneciam gravados de maneira que só podiam ser vistos à luz do sol. Senti o aroma das flores do jardim que invadiu a casa perfumando todos os cômodos, passeei por todos, a casa inteira sorria.

Na varanda, adormeci, eu esperava receber uma visita iluminada, mas nem nessa noite, nem nas próximas eles viriam. Agora eu estava ali, a casa tinha a minha companhia. A casa que nas minhas lembranças parecia muito maior, grande demais para se viver sozinha nela.

Autora: Joyce Kwiatkowski - estudante de Letras (UFRGS)

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Carmesim

— É ela, doutora. É Carmem – finalmente disse o homem, após vários minutos de silêncio.

Roberto estava com os cotovelos apoiados à mesa. Os dedos das mãos, entrelaçados, cobriam-lhe parcialmente o rosto.

— Ela foi ao meu apartamento há três dias, num fim de tarde. Queria conversar. Estava nervosa.

Ele olhou pela janela. O sol já se punha. A vermelhidão do arrebol tomava conta da sala, conferindo sua uniformidade aos objetos ali expostos. Já não lhe parecia um ambiente tão caótico, como em suas experiências anteriores. Sentia-se mais disposto.

— Disse-me que queria morrer. Queria que eu a ajudasse. Não podia esperar mais – respondeu o homem, olhando fixamente para sua ouvinte, sem, no entanto, parecer enxergá-la.

Roberto finalmente deixa seu rosto à mostra, repousando as mãos sobre os joelhos.

— Ela disse que, se eu realmente a amasse, deveria ajudá-la a pôr um fim em tudo. Disse que eu teria que matá-la, com minhas próprias mãos. Não. Não foi ela quem disse, mas a voz dela. A voz de Carmem me pediu. Suplicou. Após isso, ficamos nos olhando, em pé, no meio da minha sala. Não sei dizer quanto tempo se passou, mas sei que nunca havia observado tão detalhadamente o rosto de minha amante. Aquela expressão que Carmem nunca me havia mostrado – ou, talvez, nunca tivesse eu percebido até então – me fez livre de qualquer dúvida. Carmem queria morrer. Carmem precisava morrer. Não importava o porquê.

Uma breve pausa. Dois ou três minutos. Roberto, com os olhos muito abertos, numa expressão quase infantil, de pura inocência, prossegue:

— Vendo-a naquele estado, não tive escolha. Eu a amava. Fui à cozinha e peguei a faca mais afiada que pude encontrar. Quando voltei à sala, lá estava Carmem, imóvel, olhando-me tal qual quando sua voz me fizera a súplica. Sim, eu a amava. Aproximei-me dela, abraçamo-nos e, passando meu braço por detrás de seu pescoço, delicadamente, fiz a lâmina correr sobre sua garganta. Eu a abraçava, mas ela já não me abraçava mais. De Carmem não verteu uma única gota de sangue, entretanto a luminosidade sanguínea que se desprendia daquele fim de tarde fazia-se passar por tal ao cobrir seu corpo inerte, tendo-o eu já o deitado ao chão.

O homem cruza os braços sobre o abdômen, reflexivo, distante.

— Após isso, doutora, não mais podendo suportar ver Carmem como estava, saí de meu apartamento, deixando-a só. Passei estes últimos dois dias, também só, em um quarto de hotel barato, pensando nela e somente nela.

Vendo, através da janela, que o arrebol já se ia, Roberto, suspirando, levanta-se. Estava satisfeito. Bastava.

— Já não tenho mais nada a dizer, doutora. Sinto-me bem. Agora, só tenho vontade de voltar para meu apartamento. Quero ver Carmem. Ela está só – diz Roberto, num sorriso, encaminhando-se à saída, sem olhar para a mulher.

A doutora, sozinha na sala, deixa-se refletir por algum tempo. Já escurecia. Precisava terminar logo. Afastando de si o fantasma das loucuras de seu paciente, preenche a última ficha do dia: Roberto Palhares. 42 anos. Décima nona consulta. Pela quinta vez, pensa assassinar sua amante fictícia, a quem chama de Carmem. Esquizofrenia. Sem progressos desde a décima segunda consulta. Tratamento intensivo. Aumentar dosagem da medicação.

Autor: Cristhian Matheus Herrera - Estudante de Letras (UFRGS)

Rosas Brancas

Fazia exatamente um ano desde que Suzana estivera ali pela última vez. Como era duro estar entre aquelas paredes novamente. O pó havia se acumulado em cima dos móveis, poucas coisas ainda possuíam o brilho de antes. O vaso, que ficava cheio de rosas, estava começando a amarelar, a mesa já não apresentava o tom rosado que possuía. A pilha de jornais continuava debaixo da escada. Foi, então, que ela aproximou-se da janela. Tocou com a ponta dos dedos a cortina que havia se tornado áspera por causa do tempo, e afastou-a para que entrasse um pouco de luz no ambiente.

Encaminhou-se para o outro lado da sala. Tantas lembranças... Era-lhe quase impossível estar ali e não derramar uma lágrima. Parou diante da lareira que, agora, servia somente para abrigar inúmeras teias de aranha, ali restavam somente cinzas de um tempo que certamente jamais voltaria. Ela bateu o pó de cima de uma poltrona de couro e sentou-se diante da lareira, como fizera muitas vezes antes. Dessa vez lhe foi impossível deter as lágrimas. Apesar da visão turva, ela percebeu os porta-retratos em cima da lareira; estavam empoeirados, mas isso não lhe impedia de distinguir os sorrisos. Uma lágrima molhou o pó sobre o vidro. Ali, juntos na foto, o que eram apenas lembranças de um sonho tornava-se outra vez real.

Quase quinze anos haviam se passado desde o incidente e ela ainda não havia conseguido esquecer. A noite tempestuosa, o telefone que não tocava, aquela porta que não se abria. A mesa posta, as rosas dentro do vaso perfumavam o ar e o fogo na lareira aquecia a sala. Seria uma noite perfeita. De repente, o telefone toca, a notícia, o desespero, a solidão. Ela fechou os olhos, com apenas um suspiro foi como se estivesse revivendo tudo de novo.

Desde que Pedro partira, ela jamais conseguira voltar a morar em sua casa, pois ela estava impregnada das lembranças e era doloroso demais relembrar. Voltava, apenas, de tempos em tempos quando a saudade vinha, como uma mão, apertar sua garganta. Tanto tempo se passara, e a cada vez que voltava era como se ele ainda estivesse ali. Suzana levantou-se e subiu as escadas lentamente. Os degraus rangiam e o tapete já havia perdido sua cor. Ela abriu a porta do quarto, uma brisa leve tocou seu rosto, certamente parte de uma lembrança, de um dos muitos suspiros que ficaram perdidos pelos cantos da casa. Foi, então, que seus pés não conseguiram mais se mover, e dali, da porta do quarto, ela não podia acreditar no que seus olhos viam.

O sol entrava pela janela do quarto e dava diretamente em cima dos lençóis, que se conservavam tão brancos quanto da última vez que estivera ali. As rosas brancas, tão frescas como se tivessem sido colhidas ao amanhecer, enfeitavam sua cômoda e perfumavam o ar. A água no jarro, as toalhas brancas, sua escova de cabelos, tudo estava como antigamente. Mas como, se havia um ano que não estivera ali? Olhou para o lado e sentado próximo à janela, na sua velha cadeira de balanço estava Pedro, tão lindo e tão seu como no dia em que a morte o levara. Ele se levantou, pegou as mãos dela e sorriu-lhe como sempre fizera ao chegar a casa após o trabalho.
“Estava esperando por você, minha querida, por que demorou tanto?” Ela apenas sorriu, fechou os olhos e abraçou seu grande amor. Só que desta vez foi pela eternidade.

Franciela Arenhart Soares – Estudante de Letras (UFRGS)

quinta-feira, 2 de julho de 2009

O céu de Mendoza

Era apenas mais uma manhã tranqüila na pequena cidade de Mendoza. O sol já surgia atrás dos morros dando ao céu um tom de azul mágico que todos os moradores se orgulhavam em dizer que era exclusivo do céu mendoziano. Todos exceto um. Marta Chevrete. Para ela não havia nada de mágico naquele céu.

Marta era uma mulher da qual não se podia esperar bom humor. Abandonada pelos pais ao nascer, fora adotada por uma senhora perversa que transformou sua infância em um inferno, obrigando-lhe a trabalhar desde pequena. Enquanto as outras crianças brincavam nos parques, Marta estava na rua trabalhando. E não eram raras as vezes em que ela fugia o mais rápido possível sendo perseguida pela dona da bolsa que carregava em suas mãos. Aos quinze anos, brigou com sua mãe adotiva e saiu de casa para ganhar o mundo. Ou seria apanhar dele?

O tempo a transformou em uma empregada doméstica irritada com a vida. Trabalhava muito e ganhava muito pouco. Morava em um pequeno casebre de apenas um cômodo que conseguira comprar depois de anos de esforço. Mas o que mais a incomodava era a solidão. Não tinha absolutamente ninguém. A única família que um dia teve fora a megera senhora da qual nem queria se lembrar. A única coisa que a fazia sorrir eram as crianças. Ao vê-las brincar, Marta alimentava a infância da menina que existia dentro dela e que não pudera ser libertada. Mas, depois do sorriso, vinha o choro. Em mais um trágico episódio de sua vida, foi agredida violentamente quando grávida, por um de seus patrões, e acabou perdendo o bebê.

Naquela manhã Marta seguia suas atividades rotineiras. Acordou cedo, comeu um pedaço de pão e foi para o trabalho. Foi apenas mais uma manhã de tedioso e doloroso trabalho doméstico. Talvez tenha sido ainda pior, pois nem almoçar ela almoçou para poupar um pouco de dinheiro. À tarde, as coisas ficaram ainda piores. O calor aumentava e a castigava enquanto limpava as janelas de uma mansão, espiando uma vida feliz que sempre sonhou em ter.

Acabado o expediente, ela tinha uma longa caminhada para casa. Andava agora cabisbaixa pelo centro de Mendoza arrependida de ter pulado o almoço, pois o calor escaldante sugava suas energias. Parou numa esquina e ergueu a cabeça para atravessar a rua. Do outro lado da calçada uma loja a chamou a atenção. Era uma loja chique focada na alta sociedade, onde, com certeza, não era o seu lugar. Mas algo a chamava para dentro da loja. Não sabia explicar, era uma vontade incontrolável. Parou na frente da vitrine e ficou observando os vestidos finos que nunca ia conseguir comprar. Ao olhar para eles, pensou na falta de sorte que tido ao nascer. Podia ser ela ali dentro provando e comprando tudo o que tinha vontade. Provar? Por que não? Só porque não tinha dinheiro para compra-los não significava que não podia experimenta-los.

Entrou na loja. Sua presença atraiu olhares desconfiados. O que uma moça vestida daquele jeito estaria fazendo numa loja dessas. O segurança se aproximou dela. Mas naquele momento, os vestidos, a loja, o segurança, já não importavam mais. Estava paralisada. À frente, via sua imagem no espelho. Morena, baixo, olhos claros, um pouco acima do peso, brincos de ouro, colar de diamantes. Ela não conseguia acreditar no que via. Não acreditava na semelhança que tinha com aquela mulher. Eram idênticas. Marta sentiu uma emoção inexplicável ao ver uma criança rodeando a moça. Aquela criança fazia Marta lembrar de seus raros que guardava de sua triste infância.

- Pabla Mariana Chilote – respondeu a mulher, que fazia seu cadastro na loja – 28 de abril de 1974.

Ao ouvir a resposta que a moça dera para o atendente, Marta não conteve o choro. Sim. 28 de abril de 1974. Aquela era sua data de nascimento. Um filme passou na sua cabeça. Sua infância difícil, sua vida dura e o fato de que sempre teve que enfrentar tudo sozinha. Não tinha ninguém.

Talvez não fosse um filme que tivesse passado em sua cabeça, mas um sonho. Pois quando voltou a si, estava deitada no chão da loja. Tinha desmaiado.

- A senhora está bem? – perguntou o segurança.

Marta se levantou rapidamente para ir conversar com Pabla. Mas ela não estava mais ali.

- A senhora deve se acalmar. Ficou um bom tempo desacordada.

Sem ouvir direito o conselho do homem, saiu correndo para rua para ver se alcançava a misteriosa mulher. Olhou para todos os lados e não tinha nem sinal dela. Mas não estava triste. Pabla Mariana Chilote. Numa cidade como Mendoza, sabia que o nome era suficiente para encontrá-la.

Acalmou-se. Já estava quase anoitecendo e ainda tinha uma longa caminha até sua casa. Mas não caminhava mais cabisbaixa. Andava de cabeça erguida com um sorriso que poucos tinham o privilégio de ver. Estava decidida que no dia seguinte ia acordar cedo para procurar a mulher da loja. Mas havia algo de estranho naquela tarde. Marta não sabia explicar, mas algo estava diferente. Foi então que olhou para cima e viu o céu num colorido que jamais havia visto em toda sua vida.

Autor: Felipe Guidotti Pezerico - Estudante de Engenharia de Produção (UFRGS)

quarta-feira, 1 de julho de 2009

No alto

No alto de um morro, no final de uma trilha, um homem observa o crepúsculo de mais um dia infeliz. Ao seu redor, árvores com galhos finos e secos rangem e derrubam suas últimas folhas. O céu exibe um azul esverdeado e algumas nuvens formam belos cachecóis que se estendem até onde consegue enxergar. Com as mãos nos bolsos do jeans e com o capuz da blusa sobre a cabeça, o homem vê a noite sobrevir sobre a cidade.

Durante esse tempo, passam por sua cabeça dez assuntos diferentes. Desde a proposta de emprego que recusara até a comida que se esquecera de colocar na tigela do cachorro. Andava completamente distraído ultimamente... Desde que a Senhora o abandonara, sua vida perdera o foco, a graça, o sentido...

“Oh, Senhora, por que me abandonaste? Seria porque às vezes ficava nervoso demais? Mas quem consegue permanecer contente sempre? Bem sabes que não sou esse tipo. Ah, se eu soubesse como ser eternamente feliz! Para poder beijar eternamente seus pequenos e delicados lábios... És tão maravilhosa, tão imponente, que o que eu queria, realmente, era atirar-me aos seus pés e implorar que jamais me abandonasse. Mas sou bruto e orgulhoso demais para coisa tão sentimental e preferi conter meu amor por medo de perder o seu. E, ainda assim, o perdi.

Um som de gravetos quebrando ao longe tirou o homem de suas dores. Será que havia mais alguém além dele e da sua Senhora que conheciam aquele lugar? O som estava cada vez mais próximo. “Será que devo me esconder?”, pensou o homem, mas estava com o coração tão machucado que não conseguia se mover. Ora, nem queria.

Nada mais lhe importava. Poderia acontecer o que fosse. Então, ele vê um vulto aparecer no começo da curva da trilha, uns dez metros abaixo. Sobe convicto, certamente já estivera ali antes. Como vem subindo de cabeça baixa, não vê o homem nas sombras e apenas passa ao seu lado. É uma mulher. Um segundo depois que ela passa, sente o seu perfume. É a sua Senhora. E ele nunca a percebera tão bela. Banhada pela cálida luz da lua cheia, ela olha para as luzes cintilantes da pequena cidade. Naquele rosto magro, de nariz levemente arrebitado e de bochechas rosadas, ele nota uma expressão de cansaço e tristeza... Estaria vendo sua senhora ou um anjo?

Vagarosamente, o homem mexe a perna, mas um galho imediatamente estrala e faz a Senhora olhar para trás. Ambos se encaram por um breve instante e ela suspira o nome dele; este, por sua vez, não consegue acreditar no que está vendo. “Perdi a razão”, conclui. Uma brisa sopra e os longos e encaracolados cabelos dela esvoaçam. As folhas levantam do chão e rodopiam ao redor do lindo vestido branco que ela usa, levantando-o um pouco graciosamente e revelando seus tornozelos. Oh, que imagem que contempla o apaixonado homem! Seguramente enlouquecera. Apreensivo, aproxima-se até ficar frente a frente com ela. Estende lentamente a mão e, tremendo, toca-lhe o rosto. Espantado vê sua mão atravessar-lhe a pele e sente seu braço congelar.

Nesse instante, que parece durar uma eternidade, o homem e a Senhora olham na mesma direção. Estariam se olhando? No entanto, apenas um contém vida em seu corpo.

Autor: Alexandre Kuciak - Estudante de Letras

Projeto Purgatório

Existem várias maneiras de se educar uma pessoa. Para indivíduos diferentes, métodos diferentes. Contudo, existe um método que é aplicável a quase todos os seres humanos relativamente normais que não conseguem se disciplinar na base da conversa amigável: o da vergonha e da culpa.

Quando era pequeno, minha mãe raramente se utilizava da força física para corrigir as minhas faltas. A sua tática também não incluía Deus, nem meu pai, nem o padre ou qualquer semelhante. Para efeitos didáticos, minha mãe aumentava drasticamente o problema, fazia-o parecer gigante, assustador e... vergonhoso. Passava o dia falando sobre o assunto; incentivava os adultos à volta a me reprimirem também, e isso era sempre o pior – os olhares de reprovação lançados sobre o criminoso. Antes do fim do dia eu já estava implorando para que ela me batesse e me proibisse de jogar bola com os amigos.

Nunca pretendi ter filhos, nem ser professor, mas quando vim morar na capital, em um enorme complexo de apartamentos de tamanhos variáveis, compreendi a utilidade que poderia ter tal conhecimento. Na época, trabalhava ainda como mero auxiliar em uma das rádios locais, ajudando nas pautas de programas, calibrando equipamentos, servindo cafezinho e fazendo papel de escravo para os produtores e radialistas. Era solteiro e de poucos amigos, nunca fui de socializar. Meu primeiro lar fora da casa materna foi uma kitchenette – pequena, mas confortável e, principalmente, minha -, em um prédio ironicamente nomeado “Paraíso”. Na condição de morador desse prédio, conheci o verdadeiro inferno. Morar em um apartamento significa estar cercado de estranhos por todos os lados.

Sobre a minha cabeça, por exemplo, vivia um casal que, de segunda a domingo, das onze e meia até às quatro da manhã, se divertia com a mais antiga brincadeira adulta da humanidade. Não em silêncio, obviamente. Todos os dias, minhas horas de sono eram retardadas ou interrompidas por demonstrações efusivas e extáticas, com direito a batidas ritmadas por um pé de cama desnivelado. Já é difícil aceitar que as pessoas façam sexo quando você não pega nem um resfriado; ser então parte de uma orgia sem corpo presente é ainda mais frustrante. E, poxa, todos os dias!

Eu ignorava que alguém no andar imediatamente abaixo do meu pudesse causar algum problema. Apenas quando fui recolher pela primeira vez minhas roupas penduradas no varal exterior e senti um cheiro inconfundível de mato queimado, misturado com incenso vagabundo de patchuli é que me dei conta de que estava redondamente enganado. A vizinha do quinto piso era hippie, para minha satisfação.

Meus vizinhos adjacentes também não facilitavam a convivência: de um lado, um criadouro de cães, cujo odor chegava a atravessar as finas paredes em certos dias; do outro, um incorrigível fã de rap, sendo que todos sabem que a qualidade do gosto musical é inversamente proporcional ao seu volume.

A fauna era tão prolífica que eu sentia pena da síndica. Provavelmente sou a única pessoa do mundo que sente pena do síndico, aquele carrasco responsável por mandar o volume da festinha abaixar, por pedir que as pessoas não deixem seus lixos nos corredores do prédio, por avisar que a reforma do telhado vai causar um aumento na taxa do condomínio, por tentar conter os ânimos na reunião de condôminos.

Ah, a reunião de condomínio! É nessa agradável confraternização que você conhece o rosto dos seus algozes, e descobre que mora com criminosos em potencial (ou em atividade mesmo). Nunca vá a uma reunião dessas quando a sua fé no bom senso da humanidade estiver baixa. Foi numa dessas que tive a primeira idéia para meu projeto.
Já com três anos de trabalho na rádio, alguns programas relativamente populares no currículo, os chefões permitiram-me criar e conduzir uma atração para o horário do almoço – uma concessão e tanto.

A idéia surgiu, como eu disse, em uma reunião de condôminos. Fui acusado de ferir o gato fugitivo da senhora do oitavo andar. Os adesivos antigato especialmente colocados no meu tapete da frente da porta haviam funcionado. O “pobre Sultão” estava sem alguns chumaços do pêlo. Eu, em contrapartida, amanhecera os dias anteriores sem os excrementos do animal premiando meu capacho. Tive que ouvir um discurso de vinte minutos sobre como meu ato criminoso havia tornado Sultão um gato traumatizado; contive-me para não responder com um sermão de mais vinte minutos acerca de como pessoas insuportáveis são dadas a animais de estimação, já que estes não podem expressar opinião e abandoná-las por sua chatice, diferente de humanos.
Por Deus! Estive a ponto de dizer que talvez Sultão estivesse querendo passar um recado bem claro com sua fuga, pra início de conversa...

Mas foi só quando um dos vizinhos do sétimo andar, recém-chegado, pai de duas crianças, voltou-se para o casal do meu andar superior é que eu percebi o que poderia ajudar a regrar aquele galinheiro. Disse ele em alto e bom tom: “Vocês dois poderiam ser mais silenciosos nos seus momentos de intimidade, pois as crianças já estão ficando assustadas com os gritos da vizinha”... Todas as atenções se voltaram para a cena. Os namorados pareciam Adão e Eva tomando consciência de sua nudez pela primeira vez. O vizinho foi contundente e continuou, apenas para garantir que sua mensagem fosse clara o suficiente: “É vulgar, e nenhum de nós tem obrigação de ouvi-los”. Senti minha alma sendo lavada e acrescentei : “Sugiro que vocês ponham um tapete sob a cama”...

Foi assim que surgiu o “Projeto Purgatório”, meu programa diário na rádio, “o serviço mais eficiente de reabilitação de vizinhos sem noção”.
O produtor chegou a me perguntar: “Tony, você acredita mesmo que isso vai servir pra algo além de atrair uma audiência absurda por causa dos ‘barracos’”? Ao que lhe respondi: “Por que não? Recebemos a ligação de um delator, mandamos alguém atrás do criminoso. Se ele admitir o erro e mudar, uma semana ou um mês ou um ano depois voltamos para averiguar a situação e lhe damos uma premiação – se não, o prêmio fica com o vizinho que fez a denúncia. Você já assistiu àquele programa em que a babá ajuda a educar a família? Pois é”...

Diante dessa esquematização, minha proposta foi aceita e meu primeiro programa do projeto foi ao ar. Na triagem da primeira edição, recebemos um telefonema interessante: “Olá. Gostaria de denunciar meu vizinho, Jan Koller. Todas as manhãs em que acordo mais tarde, ele rouba o jornal da minha porta. Vocês podem não acreditar nisso – nem eu acreditava no início -, mas passei a controlar e cheguei a instalar uma câmera em frente à minha porta – tenho os vídeos gravados. Espero que este programa me ajude a reeducar esse homem”.

A equipe decidiu fazer uma pesquisa primorosa antes de gravar o programa. A narração de todo o caso foi feita por mim da seguinte forma: “Jan Koller, 45 anos, é um homem aparentemente comum que trabalha na peixaria ‘Do Mar’, da rua 727. Sua vida como vendedor, no entanto, parece não satisfazer aos seus desejos mais obscuros, os quais ele prefere suprir com uma tara absolutamente condenável: o roubo dos jornais de uma senhora que acompanha agora este programa, a fim de se ver vingada de sua injúria.

Agora, quantos de nós já não sofremos com a subtração de itens deixados à porta de nosso próprio lar? Quantos de nós não tivemos que suportar a humilhação de nos vermos furtados de objetos que adquirimos com nosso suado dinheiro, fruto do trabalho e do esforço próprio? Esse senhor, como criminoso que é, será por nós, do ‘Projeto Purgatório’, interpelado neste momento”. Em resumo, depois de alguns momentos realmente tensos, com intervenções da própria delatora, o senhor Jan confessou o pecado e prometeu não repeti-lo. “Esperamos que a promessa se faça real, pois o processo disciplinar não se restringirá a esse momento apenas... O ‘Projeto Purgatório’ e todos os envolvidos no caso do senhor Jan Koller continuarão a monitorar, por tempo indeterminado, as evoluções de comportamento deste criminoso em reabilitação. Façamos desse vizinho um homem melhor de se conviver”.

Depois da repercussão do programa, chegamos a adicionar uma mensagem padrão para incitar as pessoas a contribuírem: “Você tem alguma reclamação, alguma história pendente com a pessoa que mora ao seu lado? Ligue para a central do ‘Projeto Purgatório’ e nós analisaremos o seu caso. Porque já que a convivência entre vizinhos é inevitável, vamos torná-la algo suportável”!

O programa continua fazendo sucesso até hoje, o que prova que muitos indivíduos ainda têm algo a aprender como vizinhos. E existem várias maneiras de se educar uma pessoa sem noção. Mas, certamente, a mais eficiente é a da culpa e da vergonha.

Autoria: Maria Luísa Vanik Pinto - Estudante de Letras