quarta-feira, 1 de julho de 2009

Projeto Purgatório

Existem várias maneiras de se educar uma pessoa. Para indivíduos diferentes, métodos diferentes. Contudo, existe um método que é aplicável a quase todos os seres humanos relativamente normais que não conseguem se disciplinar na base da conversa amigável: o da vergonha e da culpa.

Quando era pequeno, minha mãe raramente se utilizava da força física para corrigir as minhas faltas. A sua tática também não incluía Deus, nem meu pai, nem o padre ou qualquer semelhante. Para efeitos didáticos, minha mãe aumentava drasticamente o problema, fazia-o parecer gigante, assustador e... vergonhoso. Passava o dia falando sobre o assunto; incentivava os adultos à volta a me reprimirem também, e isso era sempre o pior – os olhares de reprovação lançados sobre o criminoso. Antes do fim do dia eu já estava implorando para que ela me batesse e me proibisse de jogar bola com os amigos.

Nunca pretendi ter filhos, nem ser professor, mas quando vim morar na capital, em um enorme complexo de apartamentos de tamanhos variáveis, compreendi a utilidade que poderia ter tal conhecimento. Na época, trabalhava ainda como mero auxiliar em uma das rádios locais, ajudando nas pautas de programas, calibrando equipamentos, servindo cafezinho e fazendo papel de escravo para os produtores e radialistas. Era solteiro e de poucos amigos, nunca fui de socializar. Meu primeiro lar fora da casa materna foi uma kitchenette – pequena, mas confortável e, principalmente, minha -, em um prédio ironicamente nomeado “Paraíso”. Na condição de morador desse prédio, conheci o verdadeiro inferno. Morar em um apartamento significa estar cercado de estranhos por todos os lados.

Sobre a minha cabeça, por exemplo, vivia um casal que, de segunda a domingo, das onze e meia até às quatro da manhã, se divertia com a mais antiga brincadeira adulta da humanidade. Não em silêncio, obviamente. Todos os dias, minhas horas de sono eram retardadas ou interrompidas por demonstrações efusivas e extáticas, com direito a batidas ritmadas por um pé de cama desnivelado. Já é difícil aceitar que as pessoas façam sexo quando você não pega nem um resfriado; ser então parte de uma orgia sem corpo presente é ainda mais frustrante. E, poxa, todos os dias!

Eu ignorava que alguém no andar imediatamente abaixo do meu pudesse causar algum problema. Apenas quando fui recolher pela primeira vez minhas roupas penduradas no varal exterior e senti um cheiro inconfundível de mato queimado, misturado com incenso vagabundo de patchuli é que me dei conta de que estava redondamente enganado. A vizinha do quinto piso era hippie, para minha satisfação.

Meus vizinhos adjacentes também não facilitavam a convivência: de um lado, um criadouro de cães, cujo odor chegava a atravessar as finas paredes em certos dias; do outro, um incorrigível fã de rap, sendo que todos sabem que a qualidade do gosto musical é inversamente proporcional ao seu volume.

A fauna era tão prolífica que eu sentia pena da síndica. Provavelmente sou a única pessoa do mundo que sente pena do síndico, aquele carrasco responsável por mandar o volume da festinha abaixar, por pedir que as pessoas não deixem seus lixos nos corredores do prédio, por avisar que a reforma do telhado vai causar um aumento na taxa do condomínio, por tentar conter os ânimos na reunião de condôminos.

Ah, a reunião de condomínio! É nessa agradável confraternização que você conhece o rosto dos seus algozes, e descobre que mora com criminosos em potencial (ou em atividade mesmo). Nunca vá a uma reunião dessas quando a sua fé no bom senso da humanidade estiver baixa. Foi numa dessas que tive a primeira idéia para meu projeto.
Já com três anos de trabalho na rádio, alguns programas relativamente populares no currículo, os chefões permitiram-me criar e conduzir uma atração para o horário do almoço – uma concessão e tanto.

A idéia surgiu, como eu disse, em uma reunião de condôminos. Fui acusado de ferir o gato fugitivo da senhora do oitavo andar. Os adesivos antigato especialmente colocados no meu tapete da frente da porta haviam funcionado. O “pobre Sultão” estava sem alguns chumaços do pêlo. Eu, em contrapartida, amanhecera os dias anteriores sem os excrementos do animal premiando meu capacho. Tive que ouvir um discurso de vinte minutos sobre como meu ato criminoso havia tornado Sultão um gato traumatizado; contive-me para não responder com um sermão de mais vinte minutos acerca de como pessoas insuportáveis são dadas a animais de estimação, já que estes não podem expressar opinião e abandoná-las por sua chatice, diferente de humanos.
Por Deus! Estive a ponto de dizer que talvez Sultão estivesse querendo passar um recado bem claro com sua fuga, pra início de conversa...

Mas foi só quando um dos vizinhos do sétimo andar, recém-chegado, pai de duas crianças, voltou-se para o casal do meu andar superior é que eu percebi o que poderia ajudar a regrar aquele galinheiro. Disse ele em alto e bom tom: “Vocês dois poderiam ser mais silenciosos nos seus momentos de intimidade, pois as crianças já estão ficando assustadas com os gritos da vizinha”... Todas as atenções se voltaram para a cena. Os namorados pareciam Adão e Eva tomando consciência de sua nudez pela primeira vez. O vizinho foi contundente e continuou, apenas para garantir que sua mensagem fosse clara o suficiente: “É vulgar, e nenhum de nós tem obrigação de ouvi-los”. Senti minha alma sendo lavada e acrescentei : “Sugiro que vocês ponham um tapete sob a cama”...

Foi assim que surgiu o “Projeto Purgatório”, meu programa diário na rádio, “o serviço mais eficiente de reabilitação de vizinhos sem noção”.
O produtor chegou a me perguntar: “Tony, você acredita mesmo que isso vai servir pra algo além de atrair uma audiência absurda por causa dos ‘barracos’”? Ao que lhe respondi: “Por que não? Recebemos a ligação de um delator, mandamos alguém atrás do criminoso. Se ele admitir o erro e mudar, uma semana ou um mês ou um ano depois voltamos para averiguar a situação e lhe damos uma premiação – se não, o prêmio fica com o vizinho que fez a denúncia. Você já assistiu àquele programa em que a babá ajuda a educar a família? Pois é”...

Diante dessa esquematização, minha proposta foi aceita e meu primeiro programa do projeto foi ao ar. Na triagem da primeira edição, recebemos um telefonema interessante: “Olá. Gostaria de denunciar meu vizinho, Jan Koller. Todas as manhãs em que acordo mais tarde, ele rouba o jornal da minha porta. Vocês podem não acreditar nisso – nem eu acreditava no início -, mas passei a controlar e cheguei a instalar uma câmera em frente à minha porta – tenho os vídeos gravados. Espero que este programa me ajude a reeducar esse homem”.

A equipe decidiu fazer uma pesquisa primorosa antes de gravar o programa. A narração de todo o caso foi feita por mim da seguinte forma: “Jan Koller, 45 anos, é um homem aparentemente comum que trabalha na peixaria ‘Do Mar’, da rua 727. Sua vida como vendedor, no entanto, parece não satisfazer aos seus desejos mais obscuros, os quais ele prefere suprir com uma tara absolutamente condenável: o roubo dos jornais de uma senhora que acompanha agora este programa, a fim de se ver vingada de sua injúria.

Agora, quantos de nós já não sofremos com a subtração de itens deixados à porta de nosso próprio lar? Quantos de nós não tivemos que suportar a humilhação de nos vermos furtados de objetos que adquirimos com nosso suado dinheiro, fruto do trabalho e do esforço próprio? Esse senhor, como criminoso que é, será por nós, do ‘Projeto Purgatório’, interpelado neste momento”. Em resumo, depois de alguns momentos realmente tensos, com intervenções da própria delatora, o senhor Jan confessou o pecado e prometeu não repeti-lo. “Esperamos que a promessa se faça real, pois o processo disciplinar não se restringirá a esse momento apenas... O ‘Projeto Purgatório’ e todos os envolvidos no caso do senhor Jan Koller continuarão a monitorar, por tempo indeterminado, as evoluções de comportamento deste criminoso em reabilitação. Façamos desse vizinho um homem melhor de se conviver”.

Depois da repercussão do programa, chegamos a adicionar uma mensagem padrão para incitar as pessoas a contribuírem: “Você tem alguma reclamação, alguma história pendente com a pessoa que mora ao seu lado? Ligue para a central do ‘Projeto Purgatório’ e nós analisaremos o seu caso. Porque já que a convivência entre vizinhos é inevitável, vamos torná-la algo suportável”!

O programa continua fazendo sucesso até hoje, o que prova que muitos indivíduos ainda têm algo a aprender como vizinhos. E existem várias maneiras de se educar uma pessoa sem noção. Mas, certamente, a mais eficiente é a da culpa e da vergonha.

Autoria: Maria Luísa Vanik Pinto - Estudante de Letras

Um comentário:

  1. Poxa! Gostei muito do teu texto... Aqui no meu prédio a gente precisa de um serviço do tipo desse projeto. Será que não tem como tornar isso real?

    HAHAHA - Abraço!

    Gabriel V. Martins

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