sexta-feira, 10 de julho de 2009

Capítulo sobre olhos e janelas

Cá o agora. Ora o acúmulo da hora. As cortinas da visão embolorando a nitidez das formas, embolotando-se em rugas – rendas – impermeáveis à luz. As pálpebras da casa cerradas, como que para nunca mais; não querem decerto expor as cataratas impregnadas no que outrora era o mais vivo cristalino: receptáculo da poesia nascente, quando os grilos noturnos calavam e os primeiros acordes do galo convidavam “acordem, lá vem o artista da aurora, venham apreciar as cores de sua tela, abram as suas almas, abram as suas janelas”. Apesar das dezenas de anos, lembro em detalhes do que testemunhei aqui ainda jovenzinha.

Senhora partiu, sem hora para voltar, também nunca a teve para a ida. Levou junto a vida; as cortinas começaram a pesar – depois de um mês – o alvo olhar partido de meu tio acusava sua providencial despedida... Desbotava-se gradativamente o alvorecer, até o dia em que as venezianas não encontraram razão e a casa adormeceu junto com o tio. Sob uma porção de terra e sobre uma porção de sonhos esfarelados descansou o cadáver da saudade.

Desta feita aprendi que a saudade pode ser algoz de si mesma: encontrei aquele apelo em letras sinceras e sem prumo, um pedido que amarelou na gaveta da cômoda. Eu não conseguiria lê-lo até o final, os traços dificultosos embaralhavam-se. Apenas a última frase estava legível “venha para casa, Senhora, por favor” – solucei – meus olhos cobriram-se por uma tímida cortina líquida salgada que goticulou; uma gota para cada letra e cada uma se desmanchou. Foi uma poeira em minúsculas partículas dançantes que seguiam o rastro de um fino raio de sol – o único dentro da casa – enfiou-se por um buraquinho no vidro que apareceu naquela manhã de despedida: ao passar pela porta do quarto, ouvi o som delicado de vidro se partindo, percebi um buraquinho na vidraça e a imobilidade de meu tio na cama.

Entrei movida pela curiosidade; peguei a mão de meu tio que gelou em três segundos, ele tinha acabado de sair por aquele buraquinho. Eu fiquei com o silêncio e a certeza de que o pedacinho da vidraça foi a única lágrima que a casa chorou. Aquelas palavras eram o resto de alma de meu tio que ele trancou na gaveta como havia se trancado na memória, agora livres saíam do sepulcro pelo mesmo caminho que ele saíra. O fio dourado e brilhante foi-se apagando com os farelos da última frase se indo por sua linha. Meus olhos já secos, hipnotizados, não piscavam, e, quando o espetáculo no lado de dentro da casa terminou, foram levados a acompanhar o que aconteceria do lado de fora espiando pelo buraquinho do vidro. Senhora.

Qualquer um diria que ainda era vivo e alegre o jardim, com suas flores de tantas cores, mal saberia que era regado com lágrimas de meu tio. Eu olhava para ele por aquela fenda e em algum ponto entre as flores a vi. Foi por um instante, não sei por quanto tempo, à sombra do crepúsculo, meus olhos congelaram naquela imagem: ela nunca havia dado notícias, nada se sabia, nem o porquê; o que acusava sua saída voluntariosa era o sumiço de uma pequena valise e alguns pares de roupas, nada mais.

Foi com o passar dos dias sem volta que sua ausência tornou-se certeza. Agora ela estava ali, entre as flores salgadas do jardim, olhava para a varanda. Eu não sabia dos laços, do afeto profundo daquela amizade entre eles, dos sentimentos que extrapolavam os limites do tocar, do olhar – se ela, um dia, partiu sem avisar, naquele fim de tarde eu encontrava as pistas de suas razões. Ela estendeu os braços e vi meu tio descer as escadinhas da varanda. Ela atendeu seu apelo. Quando consegui fechar os olhos por dois segundos não mais os vi. Voltei o olhar para dentro da casa, era lúgubre e fria. Na epiderme poeirosa da vidraça tatuei seus nomes como eu lhes chamava “tio e Senhora”; naquela noite saí sem avisar a casa.

As lendas preservaram a solidão da casa que agora me encara pálida: toda noite na varanda brilha uma luz tênue. Os poucos vizinhos que moram à distância ao perceber o fato, acreditaram que pudesse ter sido invadida e foram verificar; ninguém conseguiu destrancar a porta ou as janelas e também não havia lâmpadas na varanda, acabaram por acostumar-se com uma luzinha acesa até a hora de dormir. Ao entrar na vila ouvi essa história pela boca de um menino e de uma menina que, com seus pequenos olhos arregalados, ainda lembrou as flores intactas e coloridas do jardim que ninguém cuida. Trouxeram-me até o portão, incrédulos que eu morei ou moraria aqui novamente, deixaram minhas malas e saíram correndo de pavor – decerto me tornarei a velha bruxa da vila.

Agora nós; eu quero vê-la, casa de minha infância, quero que me veja; vim abrir nossas janelas, desempoeirar nossas almas. Entro pela porta lateral, a mesma pela qual saí, cheiro de terra, primeiro um bafo, depois uma friagem; as tábuas rangem com as pisadas, são cantos de boas vindas. Vou ao quarto que era do meu tio, a memória sépia induz meu olhar para o furo da vidraça e lá estao não somente o furo, mas os traços tatuados na poeira, intactos – é apenas nas suas linhas que ainda se pode ver o vidro. Abro a janela para que o dia entre novamente na casa. Sem dificuldades as venezianas desemperram e o clarão que invade o quarto é tão forte que fico cega por alguns instantes – mais tarde eu lembraria esse momento sentada na velha cadeira da varanda assistindo o azul celestial alaranjar no horizonte até enegrecer por completo – quando pude voltar a ver, a casa estava viva novamente, as cortinas dançavam esvoaçantes, as paredes tinham cor, a poeira sucumbiu à claridade e no vidro, novamente cristalino, os traços de seus nomes permaneciam gravados de maneira que só podiam ser vistos à luz do sol. Senti o aroma das flores do jardim que invadiu a casa perfumando todos os cômodos, passeei por todos, a casa inteira sorria.

Na varanda, adormeci, eu esperava receber uma visita iluminada, mas nem nessa noite, nem nas próximas eles viriam. Agora eu estava ali, a casa tinha a minha companhia. A casa que nas minhas lembranças parecia muito maior, grande demais para se viver sozinha nela.

Autora: Joyce Kwiatkowski - estudante de Letras (UFRGS)

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