sexta-feira, 10 de julho de 2009

O quarto de pedra

Despertava - e parecia impossível crer que havia conseguido dormir naquelas condições - deitada no chão de um quarto úmido e frio, todo feito de pedra; seus pés e mãos estavam amarrados em estacas de metal cravadas no chão, em quatro dos vértices de um pentagrama desenhado a giz, e a cabeça ficava no quinto vértice, o mais isolado de todos; pernas abertas em tal ângulo que lhe fisgavam os músculos no joelho e perto da bacia - mas, por algum motivo, a dor era uma lembrança, algo distante, que a mente tentava esquecer. A mente, aliás, estava confusa.

Era difícil recuperar a razão naquele breu, rompido apenas de leve por uma luz de vela que bruxuleava na cabeceira de uma cama ali perto. E, no canto mais iluminado, próximo à vela, dançava a sombra de um cabide, conforme o balanço da chama, onde estavam pendurados, segundo podia concluir pela forma das sombras, um sobretudo e uma cartola - e esta, até onde as densas trevas permitiam perscrutar, parecia ser toda a mobília do quarto sombrio. Uma cama, um cabide. E o pentagrama desenhado no chão.

Ela sentia o frio das pedras penetrar-lhe pela camisola e congelar-lhe as costas e a bunda. Aparentemente, estava sozinha, mas sentia uma presença no lugar, algo como o calor do hálito de uma fera ou a eterna perseguição de olhos ocultos. Qualquer som, por mais baixinho que fosse, reverberava com força nas pedras do quarto vazio - e este detalhe deixava a atmosfera ainda mais pesada. Ouviu um barulho de torneira enferrujada sendo aberta. As paredes guincharam quando a água começou a mover-se pelos velhos canos da construção, que há muito tempo não eram usados.

Imediatamente, e sem que pudesse controlar, os pêlos dos braços elevaram-se num arrepio. Pouco depois, o mesmo som agudo de torneira se repetiu, e o barulho de água cessou. Alguma coisa soou como uma porta rangendo e depois Pou!, a porta bateu. Passos ao longe. Stepstepstep, botas, cada vez mais perto, e a barulheira faria um desavisado crer que um exército inteiro marchasse no aposento ao lado.

Seus olhos já estavam acostumados com a escuridão, mas ainda assim o campo de visão era muito limitado pelo negrume em que o quarto estava afundado. Acompanhava todos os acontecimentos com os ouvidos. Depois de breve silêncio, ouviu um barulho de chave girando e uma porta abrindo, muito próximo de si, deixando um facho de luz entrar pela fresta, vindo do aposento ao lado. Um vulto passou pela porta, que foi então fechada, escondendo a luz e envolvendo tudo novamente no escuro.

Algo esquivou-se sorrateiramente pelo quarto, criando um suspense tão denso que até os pensamentos foram silenciados - mas falar em silêncio total é exagero, pois mesmo nos lugares mais inóspitos e improváveis o universo se encarrega de produzir algum ruído. Até mesmo no vácuo - e boto meu pescoço à prova contra todos os físicos do mundo - poderíamos ouvir este som tão aterrador que nos sai de dentro, e que agora soava como um tambor pelo quarto de pedra onde ela esperava o tempo vagaroso revelar-lhe o destino: Tumtum. Tumtum. Tumtum, o coração ribombava acelerado. Um leve vento acariciou-lhe os cabelos, e ouviu um barulho de fósforo sendo riscado.

Perto dela estava agachado um homem. Apesar do contorno mal delineado pela luz tênue que vinha da cabeceira e do fósforo aceso em suas mãos, era possível perceber que ele acendia outras velas dispostas ao redor do pentagrama. Logo, a luminosidade do quarto tornou-se significativamente maior - e lá estava, nitidamente, agachado perto dela um homem de meia idade, mãos apoiadas nos joelhos e oh meu D....

- Mas... eu conheço você! - disse a garota. O homem acenou positivamente com a cabeça, a barba grisalha brilhou na escuridão, mas não proferiu palavra.

- Quem...???? - tentou novamente a garota.

- Calma, querida, você vai recuperar a consciência aos poucos. Não há necessidade para apressar-se, já que o tempo não está correndo mais para mim ou para você.

- Como assim? Uh! Você pode me soltar? Me ajude...
Em resposta, o homem soltou uma gargalhada retumbante.

- HOHOHO! Não posso. Faz parte do ritual. Você precisa sair sozinha.
Ela se debatia, tentava livrar-se das amarras à força.

- É impossível. Parece que alguma coisa sobrenatural me prende a este chão gelado, a estas estacas.

- Hohoho! Com certeza, minha querida, o seu corpo está preso. O meu também está - grudado intimamente às pedras do quarto ao lado.

- Como é?

- Você precisa livrar-se dele. Saia do corpo, deixe a mente conquistar a independência merecida.

- Então você é...?
O homem acenou com a cabeça, interrompendo-a gentilmente.

- Sim, ectoplasma. Vamos, garota, não viemos até aqui por nada. Poucos são aqueles que têm a oportunidade de visitar o verdadeiro caos.

Algumas lembranças eram, dose a dose, injetadas novamente em sua consciência. Aos poucos, lembrou-se da vida verdadeira, dos estudos de ocultismo, das leituras proibidas, dos contatos com entidades de além-mundos, mas nunca, nunca em sua vida de ciência profana, nunca em seus exercícios obscuros, esteve tão perto de, ela mesma, ser uma criatura liberta do espaço e do tempo. Estava deitada no centro do pentagrama, e com um pouco de concentração poderia deixar seu corpo para trás, e vagar com a alma pela eternidade.

E este homem, o mestre taciturno de nariz aquilino, estava estranhamente bem-humorado no momento - provavelmente por contemplar os progressos da sua mais louvável discípula - e seus os olhos vibravam de orgulho enquanto observava um fluído branco insinuar-se pela escuridão, saindo vagarosamente dos olhos, do nariz e da boca da menina, para aos poucos ganhar a forma da dona - a verdadeira materialização de sua alma.

- Magnífico! Você evolui muito rápido. Eu mesmo demorei muito tempo para aprender as sutilezas do ectoplasma. Minhas primeiras manifestações eram aberrações disformes, longe de minha verdadeira aparência. A sua está perfeita!
O ectoplasma da garota sorriu com o canto dos olhos. Era difícil de controlar a própria forma, e alguns membros iam perdendo as características conforme ela perdia a concentração. Mas, mesmo assim, estava saindo-se realmente muito bem com sua forma etérea, aprendendo inclusive a controlar seus movimentos - e deixou que ela se movesse até a janela. Nevava lá fora, e algumas carroças tentavam encontrar caminho entre os acúmulos de neve.

- Uau! Onde estamos? Quando estamos?

- Quando e onde a Srta. quiser. Estas perguntas já não lhe servem mais, pois você já não faz mais parte da linearidade de eventos que aparentemente constitui o tempo. Devagar, com mais experiências deste tipo, você vai aprender a viver no caos, que é essência do próprio universo, e a vida comum já não lhe fará mais sentido.

- Você quer dizer... estou fora... além dos limites dos meus 5 sentidos?

- Sim, teoricamente a Srta. está. - respondeu-lhe o homem num suspiro. Mas ainda não aprendeu a ver o mundo dessa maneira. Os teus sentidos ainda percebem apenas o que querem perceber.

A garota, intrigada, continuou a andar pelo quarto. Passou as mãos pelas paredes e sentia a própria vida pulsando no fundo das pedras ancestrais. Não conseguia entender por que este quarto, a cama, os odores, porque tudo isto era tão familiar - como se um pedaço de sua alma estivesse preso entre aquelas 4 paredes. O ambiente todo lhe causava uma sensação muito profunda de nostalgia, de algum momento já vivenciado. Achou por bem contar isto ao homem:

- Tenho uma sensação esquisita. Me sinto muito familiarizada com este lugar.
O mestre sorriu.

- Não há nada de errado nisto. Este era o seu quarto.

- O meu quarto?

Estralando os dedos, o homem fez as velas queimarem com mais voracidade, o que aumentou a luminosidade. Então, ela reparou em algo que lhe havia passado despercebido: na cama, uma garotinha dormia um sono infantil, numa serenidade própria da consciência limpa que apenas as crianças possuem. Era ela. Ela própria.

Um século atrás, em outra vida, em outro corpo, a mesma alma. Ambas dividiam a mesma alma, e este pensamento perturbou profundamente a garota do pentagrama. E perturbou também a pequena garotinha, que acordou de sobressalto com os olhos esbugalhados e insanos fitando a escuridão.

Autor: Gustavo Matte - estudante de Letras (UFRGS)

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