terça-feira, 15 de setembro de 2009

Ocaso – um réquiem quentinho

O caso é que conheci um menino que tem os cabelos de sol poente – bem alaranjadinhos. Aconteceu de ele me falar, embaixo das árvores outônicas, enquanto estávamos sentados em um murinho todo respingado de sol, que “quem já morreu fica num lugar quentinho que a gente não vê, cuidando de quem ainda não morreu”. Assim, citando Caio Fernando Abreu, ele me fez lembrar a Margarete.

A Marga passou comigo o domingo dos meus vinte e sete outonos. Eu gostava muito do seu nariz, parecia um nariz de bruxinha, mas ela não gostava, então foi lá e estragou, deixando ele retinho; eu fiquei triste, mas feliz porque ela gostava mais assim. Domingo indo-se, veio a despedida: nos abraçamos, mas não tão forte. No final do mês que vinha passaríamos mais um domingo juntas, o dos seus vinte e nove outonos e, assim, mais muitos anos de vida e eu reclamaria, mesmo em silêncio, o nariz e me conformaria quando ela dissesse que preferia o novo. Se os amigos são felizes, a gente também é.

Eu não moro mais tão perto, também não tão longe, mas não quis ir ao velório. Continuei aqui e guardei para sempre na memória nossa última tarde de domingo e tantos outros momentos mágicos. Fiquei eu e os álbuns com nossas fotos da época em que a Marguinha ainda tinha seu nariz de bruxinha, mas também as últimas duas tiradas no meu aniversário; aquele abraço não tão apertado foi nosso adeus. Alguém que não sabia de sua mágica de viver privou todos que a amavam de sua presença, de seu sorriso que fazia nascer o sol.

A Marga dizia: “O que seria da vida sem amigos?” E essa era sua mágica, ela pode ter tirado o nariz, mas está lá no seu lugar quentinho, cuidando da gente que ela enfeitiçou com sua poção da amizade. O sol se pôs e ela pegou carona na sua carruagem e foi um menino com cabelos cor de sol poente que, ainda citando Caio, disse: “E se você quiser agradar a essa pessoa, é só fazer coisas que ela gostava. Aí ela fica ainda mais quentinha e cuida ainda melhor da gente.”
A Marga não fez vinte e nove outonos, mas agora ela nasce todos os dias com o sol que é muito quentinho. Lembrar dela é continuar vivendo a sua mensagem, ouvir o menino que há pouco conheci e me perguntar profundamente: “O que seria da vida sem amigos?”

Velei minha dor no dia de seu enterro, entre as fotografias e as linhas do meu diário, com esse pequeno poema:

Doce Marga.
Amarga dor.
Amarga foi – a partida quando – A Marga foi.
Marga ter o amargo adeus amarrado na garganta como um cão em sua corrente
louco para sair derrubado muros e portões
e com muitas lágrimas salgadas
dizer que: Ah Marga! Amarga é a vida sem você.


Autora: Joyce Kwiatkowski - estudante de Letras (UFRGS)

Os dias – não tão angelicais – de Angel

Olá! Meu nome (atualmente) é Angel. Sou um bebê queniano de seis dias de vida, e gostaria de contar minha curta trajetória até aqui.

Fui concebida em um ambiente não muito familiar. Minha mãe passou esses últimos nove meses acolhida na casa de Mariah, sua amiga. Não tinha muito contato com seus familiares e, quando tinha, era-o para discussões. Meus avós diziam que ela “não devia ter se envolvido com aquele traficante, que só tinha se aproveitado e dado no pé”. Sinceramente, ainda não entendi o significado dessas palavras, mas, pelas várias vezes em que foram proclamadas, deve ser algo muito relevante.

Nasci naquele mesmo quartinho em que minha mãe estava morando, Mariah foi quem fez o parto. Foi estranha a sensação daquele novo mundo. E, quando quis refugiar-me nos braços de minha mãe, ela não me aceitou. Não quis pegar-me em seu colo, não quis dar-me de seu alimento. Fui acolhida por Mariah, que também tem uma criança. Um bebezinho muito querido, por sinal, pois não se incomodava quando eu bebia do leite que a ele deveria ser destinado.

Eu estava muito envolvida com Mariah. Ela me chamava de “Anna”, e transmitia-me uma ternura muito acalentadora. Eu queria permanecer com ela, e ela dizia que queria ficar comigo. Minha mãe, por sua vez, respondia que não iria mais incomodá-la, e que “ia dar um jeito na situação”.

Ao entardecer do segundo dia, minha mãe pegou-me no colo (pela primeira vez) e saiu correndo da casa, como quem fugia. Não sei para onde ela foi, mas sei que fui colocada por entre alguns arbustos de um bosque. Até achei interessante aquela paisagem, mas logo vieram insetos sobre meu corpo, e estava começando a escurecer. Minha mãe não retornava... Entrei em desespero. Por duas vezes, ouvi passos de pessoas próximas a mim, mas ninguém parou para saber do meu pranto. Em meio às minhas lágrimas, adormeci.

No dia seguinte eu estava faminta, mas Mariah não estava lá para me amamentar. Os carros passavam ao longe, eu podia ouvi-los, mas ninguém me ouvia... Até que senti um balanço, alguém havia me pego e estava me carregando. Fui largada novamente, mas dessa vez não por entre arbustos. Eu estava rodeada por calor e afeto. O problema era que não recebia alimento! Estava muito agradável a sensação de companhia e ternura, mas eu precisava da Mariah... Chorei... E meu pranto chamou a atenção de uma senhora que por ali passava. Seu nome era Sara, ela pegou-me em seus braços, muito emocionada, e levou-me a um estabelecimento onde várias moças vestidas de branco cuidaram-me e deram-me de comer. Foi delas que recebi meu novo e atual nome, “Angel”.

Nesse momento, olho pela janelinha desse quarto no qual estou (agora sei que esse lugar chama-se hospital e que as moças de branco são enfermeiras) e percebo que há muitas pessoas lá fora, algumas portando uns objetos que lançam luzes e outros objetos que ficam apoiados em seus ombros. As enfermeiras continuam a embalar-me e dar-me afeto. Mas eu ainda penso em Mariah... Sinto sua falta! Penso em minha mãe... O que será que aconteceu com ela? E por que tudo isso aconteceu comigo? E o que vai ser da minha vida agora? E penso, também, em quem poderá ter me tirado daquele bosque sombrio e cheio de insetos... Seja lá quem for, sou eternamente grata!

...

Eu sei responder as questões da Angel! Sou ‘quem’, há um mês, recolheu-a dos arbustos ao ouvir o seu chorar e colocou-a em meu leito, junto ao calor dos meus quatro filinhos. Eu gostaria de tê-la cuidado, mas sabia que ela não poderia ficar mais muito tempo comigo, sabia que Angel precisaria de leite materno e tudo que qualquer criança precisa para crescer e socializar-se. Por isso, deixei Sara recolhê-la, Sara levou-a ao hospital da cidade. Angel foi cuidada por enfermeiras, agora está para ser adotada (e olha que há muitas famílias interessadas pelo anjinho!). Fico feliz pela gratidão, mas não preciso de agradecimentos. Eu só fiz o que qualquer ser humano deveria ter feito ao ouvi-la chorar naquele bosque.

Mariah está preocupada... Tem medo de ser julgada como cúmplice de algo ilegal. Por mais que de sua parte estivesse apenas fazendo uma boa ação, teme ser mal interpretada, ser vista como quem manteve alguém refugiado (considerando as circunstâncias) em sua casa. A rejeição e sumiço por parte da mãe de Angel estão sendo averiguados; seu pai está sendo procurado pela polícia, agora não somente por tráfico, mas também por abandono de menor.

É delicada a situação moral da mãe da menina... Ela era adolescente quando começou a envolver-se com aquele rapaz. Ele era um moço atraente, viril, porém, um dos maiores mandantes do tráfico de armas no Quênia. Quando os pais da jovem souberam do envolvimento, disseram-lhe que não iriam responsabilizar-se por qualquer consequência. A jovem engravidou, sabia que não teria apoio paterno e foi buscar ajuda em sua amiga Mariah, que também estava grávida, mas já de quatro meses.

Mariah, compadecida, acolheu-a. Por várias vezes tentou conversar com a amiga, dizer que ela poderia tentar reconciliar-se com seus pais, mas a garota tinha muito medo. Resolveu ficar em seu refúgio. E, mesmo que Mariah se disponibilizasse a adotar a criança, ela não queria dar continuidade a essa história, tanto que fugiu com o pequeno anjo e abandonou-o. Hoje, ninguém sabe o paradeiro da jovem. E, se ela for encontrada, possivelmente precisará antes de um acompanhamento psicológico que de uma cadeia.

Para Angel, um futuro brilhante é possível. Mas espero que esse passado macabro não lhe tire as graças de uma infância feliz.
E agora, permita-me apresentar-me! Meu nome é Lessy, sou uma cadelinha vira-lata e vivo com a Sara.

Autora: Caroline Lazzari Manfio - estudante de Letras (UFRGS)

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Os panos de Goya

Quando as pancadas soaram em sua porta, ele acabava de dar as últimas pinceladas no amarelo ouro da calça do homem.

— Señor Goya y Lucientes, perguntou em tom ameaçador o mais jovem dos guardas empertigados diante de sua porta.

— O que desejam, disse a sua vez o velhote de olhos mortiços.

Um safanão, seu pincel foi jogado no chão e ele, assustado, se apressou para o fundo do quarto. Meio escondido nas dobras do enorme cortinado, percebeu nos guardas os esbirros do santo tribunal. Teve medo, quis engolir o ar mas não tinha mais saliva. A luz batendo forte nos olhos dos visitantes manteve o homem livre por pouco tempo. Logo um dos policiais agarrou-o pelo braço e berrou que fosse com eles, que era aguardado no Santo Ofício. Francisco sentiu-se desfalecer. O medo tomou conta de sua velhice e ele amoleceu a resistência. Nada podia contra a presença grandiosa daquela corte.

Ao entrar no salão das autoridades ele viu seu quadro mais secreto exposto aos olhares indecentes daqueles homens. Imperceptivelmente recuou, mas um dos policiais empurrou-o sem modos para diante, com tal força que ele caiu diante de um dos nobres enfarpelados.

— Ora, ora, quem temos aqui: nosso artista libidinoso. Mas é um velho, um velhote muito feio...

Francisco deixou que a alma lhe caísse aos pés, baixou os olhos e ajoelhou-se diante do falante, em sinal de respeito. O inquisidor em pessoa... Seus olhos foram atraídos pelo quadro, pelo rosto adorado. O tempo passado só fez aumentar a nitidez da lembrança da alegria com que ela enlaçava seu pescoço, buscava sua boca, jogava para o lado o pedaço de tela que cobria sua nudez do fresco ar matinal. Somente a luz daquelas manhãs de final de inverno davam a carne dela o tom de porcelana de biscuit que ele tanto buscava. Então a cabeleira negra e rebelde saía de sua prisão atrás da cabeça da mulher e, copiosa, escondia os afagos dos amantes. Francisco fechou os olhos e quase podia sentir o perfume de sua pele, o som rouco da voz dela.

Aquelas bocas torcidas pela concupiscência eram indignas de qualquer participação naquele amor. Francisco torceu as mãos molhadas de suor, baixou a cabeça e suspirou longamente.

Seco de carnes, olhar acre, o inquisidor impacientou-se com o silêncio do réu. Repetiu a pergunta, mas Francisco fechou-se em silêncios. Não era ingênuo: imaginava as consequências de cada som saído de sua boca. Não podia trair segredo tão antigo. E ademais, estava bem informado, sabia que o Bonaparte francês livraria a Espanha daquele anacronismo sangrento. O tempo estava a seu favor. Bastava que se calasse.

Lembrou do primeiro encontro com ela, quando ainda não era a Maja, mas doña Maria Tereza Cayetana, esposa do duque de Alba, seu amigo.

A cabeleira crespa e negra, a alva pele, os olhos mouros por detrás dos cílios, Francisco foi atingido pelo amor louco na coincidência daquele encontro. O tribunal de velhotes não podia emporcalhar com a sua torpeza aquele segredo tão cuidado dos amantes... A Francisco a existência daquela corte lhe diminuía como ser humano.

Mas sem perceber a perturbação do pintor, o tribunal se preocupava com a escandalosa nudez da mulher. Exasperado com o nervosismo de Goya, Dom Antonio Llorente quis abreviar a sessão. Anunciou ao réu que retirasse o quadro imediatamente e fosse cobrir as vergonhas da mulher com os panos dos tecelões de Segóvia.

Dom Francisco de Paula José de Goya y Lucientes apoiou então a bengala no banco de madeira e de um salto agarrou o quadro da Maja, saindo abraçado com ele, quase correndo, pelos becos malcheirosos.

Conta-se que no dia seguinte Francisco embarcou no primeiro navio para Bordéos e nunca mais voltou à sua Espanha natal, deixando para Dom Antonio Llorente uma nova maja, coberta de panos e tão desnuda quanto a da véspera.

Dos amores de Francisco com Tereza souberam apenas os historiadores curiosos dos séculos seguintes.

Autora: Maria Regina Jacob Pilla - Estudante de Letras

terça-feira, 14 de julho de 2009

Aquela noite...

...foi mais uma noite abafada no verão de Manaus. O céu estava encoberto por uma densa camada de nuvens que parecia colocada ali de propósito, como que para esconder as estrelas. O clima úmido também não ajudava. Após um dia de sol forte e temperatura alta, o temporal que caiu ao fim da tarde não amenizou em nada o ar sufocante que pairava sobre a cidade.

Naquela noite, como de costume, eu e minha namorada Jéssica fomos ao cinema da rua Cristo Rei, na sessão promocional das 22 horas. A história que quero contar aconteceu na volta do encontro, logo após eu ter deixado a Jéssica no portão de casa. A rua na qual ela mora é escura e cheia de terrenos vazios, e eu adoro voltar caminhando de lá. É bom para colocar os pensamentos em ordem. Eu mal havia riscado um fósforo e o estava aproximando do cigarro que pendia na minha boca, quando algo estranho no céu desviou a minha atenção.

Algumas dezenas de metros a minha frente, as nuvens se abriram lentamente, em um formato quase circular, dando passagem a uma luz fraca e roxa. Aos poucos, pude distinguir uma forma. Por trabalhar durante o dia como transportador de cargas no Aeroporto Eduardo Gomes, posso dizer que conheço todos os modelos de aeronaves que transitam pela região. Igual àquela, entretanto, eu nunca havia visto. O objeto era parecido com um Zeppelin achatado e possuía asas, uma em cada lateral, como as de um avião comum. A carcaça era feita de um metal esverdeado e parcialmente coberto por manchas escuras, o que lhe dava um aspecto “vivo”. Em cada uma das asas e também nas partes dianteira e traseira do corpo da nave havia uma espécie de turbina, posicionada na vertical. Era dessas turbinas que a luz roxa emanava, ficando mais fraca à medida que o contato com o solo se tornava mais iminente.

Fui desperto do estado de paralisia, no qual me encontrava, por uma forte dor em minha mão direita: o fósforo que eu havia riscado queimara até próximo do fim, e sua chama já atingia meus dedos. Sacudi a mão com violência, como se isso fosse aliviar a dor, e voltei a olhar para o céu. A nave, porém, havia descido até quase tocar a vegetação de um terreno abandonado, cerca de 20 metros a minha frente. A luz de um poste próximo brilhou forte por alguns instantes e depois se apagou com o estouro da lâmpada, deixando completamente nas sombras a região na qual o objeto pousara.

Um holofote de luz forte e branca se acendeu na nave, cegando meus olhos. Imediatamente levantei o braço e tentei proteger minha visão com a mão. Um som de ar comprimido sendo liberado se seguiu e, acompanhado do ranger de engrenagens. Apesar de não enxergar nada, tive a certeza de que uma porta se abrira. Quando o barulho cessou, pude escutar duas ou mais vozes bem agudas conversando em algum idioma indistinguível.

O silêncio da noite, que até então permitia que eu ouvisse as vozes, foi interrompido pelo ruído de muitos motores. E os motores estavam se aproximando rapidamente pelas minhas costas. Virei-me para ver o que se aproximava e vi três ou quatro pick-ups negras chegarem a alguns metros de onde eu estava e estacionarem. Quatro homens com uniformes do exército desceram de cada carro. Também chegaram dois Jeeps grandes, com algum tipo de metralhadora ou outra arma pesada sobre suas caçambas.

De um alto-falante em um dos carros, uma voz pediu que a nave desligasse o holofote e se identificasse imediatamente. Tudo o que se ouvia então era o ronco dos motores dos Jeeps, que ainda estavam ligados. Com um gesto, um dos homens ordenou que os motores fossem desligados, o que acoteceu imediatamente. Identifique-se agora, ou seremos obrigados a abrir fogo, Disse mais uma vez a voz ao alto-falante. Como não houve resposta, o homem que até então estava dando as ordens selecionou quatro outros homens para irem até a nave. Eles foram.

Achei que era hora de me aproximar do comandante da operação e reportar tudo o que vi. Vá para casa, garoto, Foi a resposta que obtive dele antes mesmo que eu pudesse terminar de falar, Você não sabe com o que está lidando. Eu estava começando a argumentar quando a atenção de todos, inclusive a minha, se voltou para o som de tiros e gritos que vinham da nave. Alguns segundos depois, tudo era silêncio novamente. Em meio à toda aquela luz, a silhueta de um homem podia ser vista. Um dos quatro homens que haviam sido mandados até a nave estava retornando. Ele estava mancando, seriamente ferido e com a roupa rasgada e cheia de sangue. Atirem, acabem com esses desgraçados, Ele disse com raiva, antes de cair com o rosto no chão.

Nesse momento, os holofotes se apagaram, revelando os corpos dos outros três homens caídos, um pouco mais à frente. Na distância entre os corpos e a nave, cinco criaturas humanóides, com aproximandamente dois metros de altura, pernas finas e olhos negros e redondos, estavam nos observando atentamente. Quatro empunhavam em sua mão direita uma espécie de disco de metal dentado, como o do uma serra circular. O quinto segurava uma estranha arma, do tipo que se vê em filmes de ficção científica.

Atirem, atirem, seus idiotas!, Gritou o comandante ao meu lado, e os homens que operavam as armas no Jeeps abriram fogo. Os tiros, entretanto, pareciam perder sua força à medida que se aproximavam do alvo, caindo inofensivamente aos pés dos extraterrestres. Quando os disparos cessaram, a criatura que empunhava a arma gritou e todos os outros lançaram seus discos. Destes, três atingiram soldados próximos à mim e retornaram as mãos de seus donos. O quarto disco teria me decepado se o comandante não houvesse me empurrado na hora certa. Caí no chão e, assustado, me arrastei até atrás da pickup, onde sentei com as costas no pára-choques, tremendo. Então, mais tiros foram disparados.

Não consigo precisar quanto tempo fiquei ali sentado, ouvindo tiros, gritos e o zumbido daqueles discos voando. Aos poucos, porém, o silêncio foi tomando conta da noite novamente e, quando não havia mais qualquer som, achei que era seguro sair do meu esconderijo. Levantei-me e dei a volta no carro. A primeira coisa que vi foi o corpo do comandante estendido no chão. Ele ainda segurava uma metralhadora, e o pavor estampado em seu rosto permanecia. Abaixei-me, peguei a arma de suas mãos e a segurei desajeitadamente, apontando para a frente.

Quando avancei alguns metros em direção à nave, pude ver os corpos mutilados dos outros soldados. Mais adiante, vi também os corpos de quatro alienígenas. Com muito cuidado, me aproximei das criaturas, a fim de dar uma boa olhada em seus corpos. De repente, o extraterrestre que estava caído a minha esquerda soltou uma espécie de uivo e, levantando o tronco do chão, agarrou minha perna. Sem antes pensar, apontei a metralhadora para a criatura e pressionei o gatilho. Não consegui segurar firmemente a arma, e a parte de trás dela me atingiu repetidamente as costelas. Ainda assim, a rajada de tiros que atingiu o peito e a cabeça da criatura foi suficiente para fazê-la tombar definitivamente.

Foi só então que reparei que o quinto alienígena, aquele com a arma estranha, observara todo o ocorrido. Ele estava de pé sobre a rampa de acesso à nave e, por mais estranho que fosse, ele estava sorrindo. A criatura disse alguma coisa e, antes que eu pudesse me mexer, levantou sua arma e a disparou contra mim. A última coisa que lembro foi sentir um forte impacto, como se tivesse sido atingido por um caminhão.

Acordei não sei quanto tempo depois, com o som de sirenes se aproximando. Levantei assustado, ao lembrar do que havia ocorrindo na noite passada. Entretando, o sol que já estava nascendo iluminava apenas alguns terrenos vazios a minha volta. Não havia corpos, não havia espaçonave, não havia pickups. Tudo parecia normal, e por um momento cheguei a acreditar que tudo não passara de um sonho.

Avistei, porém, em frente a uma casa próxima, um grande aglomerado de pessoas conversando em voz alta. Lá, estavam os carros de polícia cujas sirenes haviam me acordado. Caminhei até lá e, a fim de dar uma olhada mais de perto, fui abrindo caminho entre os curiosos. Avancei até encontrar uma daquelas fitas amarelas da polícia, onde parei e levantei os olhos. Um enorme objeto caído do céu havia atingido aquela casa, reduzindo-a a escombros. Era uma das turbinas da nave da noite anterior, e eu a reconheci de imediato. Minhas pernas ficaram bambas, minha cabeça tonta, e eu desmaiei.

Autor: André Rath Rohr - estudante de Engenharia der Produção (UFRGS)

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Sobre meus amores

Sempre os amei, sempre. Desde o dia no qual mamãe disse que eu teria uma irmãzinha, a amei, aguardei ansiosamente os meses de gestação de mamãe até que a maninha nascesse. Era linda, um lindo bebê e, desde o momento em que a vi nos braços de mamãe, tive a certeza de que ela seria para sempre minha, que me amaria tanto quanto eu a amava e que faria tudo por mim, assim como eu faria tudo por ela.

E assim foi - pelo menos era o que eu achava! Eu a protegia na escola, nenhum colega ousava debochar dela ou magoá-la, em casa a mesma coisa, nem mamãe nem papai a castigavam, eu sempre a defendia, achava outra explicação, e quando necessário, assumia a culpa por ela, afinal a amava e quando eu precisasse dela, ela estaria lá.

O tempo passou, mas nunca ficamos muito longe. Do meu casamento ela foi madrinha e quando Maria Francisca nasceu, retribuiu me convidando para ser madrinha de batismo da pequena Chica, que nos trouxe vida, alegrou a todos nós, pois, após tantos anos tentando engravidar, fazendo tratamentos, gastando o que podíamos e o que não podíamos, nunca consegui ter um bebê até minha sobrinha nascer. Ela também era minha. Cuidava dela à noite, quando tinha cólica, quando ficava doente... Quando queria qualquer coisa, eu ia correndo comprar. Antônio, meu marido, também a amava e cuidava dela melhor do que o próprio José (ex-marido da mana). Como nunca desconfiei?

Tínhamos uma empresa e eu sempre cuidei de tudo, mas há alguns meses as coisas começaram a ir mal, muito mal, contraímos dívidas e, para pagá-las, fizemos empréstimos, os quais nos acarretaram mais dívidas. Cada vez que tentávamos nos reerguer, mais afundávamos. Comecei a emagrecer drasticamente, eu não conseguia nem sequer pensar em baixar o padrão de vida que me esforcei durante tanto tempo para conquistar. Como diria não à pequena Chica? Como explicaria a minha irmã que teríamos que nos desfazer dos imóveis? Como?

Naquele momento, achei que o pior já havia acontecido, até que descobri que eles queriam me internar numa clínica. Mana e Antonio alegaram que eu estava muito estressada e esta seria a única solução no momento. Logo eles, a quem dediquei toda a minha vida, me traindo, me machucando me fazendo sofrer daquele jeito. E eu achei que era o máximo a que poderiam chegar, mas não!

Depois que a mana saiu, a discussão continuou com meu marido até que ele disse o que eu nunca poderia imaginar, nem no meu pior pesadelo. Disse-me que havia alguns anos, quando viajei a negócios, ele – o homem que eu mais amava, iniciou um caso com a minha irmã – a pessoa que mais amei e a quem me dediquei — e fruto desse caso nasceu minha sobrinha. Não, não foi uma transa, ou duas, foi um caso de um ano que só terminou com o nascimento da Chica.

Ele contou tudo. Narrou detalhes que eu não precisava ouvir, no entanto, ouvi calada. E calada permaneci até que ele também se calasse, até que ele deitasse na cama, até que ele adormecesse.

Fui à cozinha, peguei a faca que julguei mais perfeita para o que eu pretendia, caminhei até o quarto e dei uma facada em seu pescoço, mas ele continuou a respirar. Peguei meu travesseiro e coloquei em seu rosto até que ele não movesse mais nenhum músculo, até que tivesse certeza de que ele nunca mais me magoaria, que jamais me faria sofrer daquele jeito.

Lavei e guardei a faca, voltei ao quarto e me sentei na poltrona, de onde podia ver seu corpo e seu rosto, rosto que tantas vezes beijei, corpo que tantas vezes amei. Como pôde me trair? Logo eu, que tanto o amava? Logo com quem eu mais amava, minha irmã, que tantas vezes defendi e sempre protegi? Eu não podia deixar assim, não podia!

Dormi no quarto de hóspedes. Levantei-me no horário habitual, coloquei a faca na bolsa e fui à empresa. Quando perguntaram por ele, disse que viajara para tentar vender um apartamento. Ninguém estranhou. Por que estranhariam?

Trabalhei normalmente, peguei Chica na escola e jantamos em sua lancheria preferida. Depois fomos para o apartamento de minha irmã, dormiria lá para não dormir sozinha, aliás, como sempre fazia quando meu marido viajava. Claro que eu iria me proteger, claro que eu iria cuidar para que a minha irmã não me traísse, não me magoasse, para que ela nunca mais me fizesse sofrer, para não doer mais, nunca mais. Abri a bolsa quando elas adormeceram e fui até a mana, mas ela acordou na primeira facada de raspão e gritou para Chica pedir socorro. Sei que me perguntarão por que matar uma inocente criança, acreditem, eu a amava mais que qualquer um, mas se a deixasse viva, deixaria a prova dos anos de traição, de ter sido feita de idiota, de ter me esforçado tanto, protegido tanto, cuidado e amado tanto pessoas que nem por um segundo pensaram em mim, na minha dor.

Após ter dado algumas facadas na mana, fui até a porta onde estava Chica prestes a gritar e esfaqueei a minha pequena. Na primeira facada, senti tanta dor que quase desisti, mas era preciso continuar, a mana tinha que sofrer tanto quanto eu estava sofrendo. Além da dor física, a dor de ver a filha que ela gerou sendo morta pelas minhas mãos. Quando Chica parou de respirar voltei até a mana e terminei de esfaqueá-la, uma facada em mim, outra nela, uma em mim outra nela...

Sabem o que é mais estranho? Ainda não parou de doer.

Autora: Loiva Costa Santos - estudante de Letras (UFRGS)

O quarto de pedra

Despertava - e parecia impossível crer que havia conseguido dormir naquelas condições - deitada no chão de um quarto úmido e frio, todo feito de pedra; seus pés e mãos estavam amarrados em estacas de metal cravadas no chão, em quatro dos vértices de um pentagrama desenhado a giz, e a cabeça ficava no quinto vértice, o mais isolado de todos; pernas abertas em tal ângulo que lhe fisgavam os músculos no joelho e perto da bacia - mas, por algum motivo, a dor era uma lembrança, algo distante, que a mente tentava esquecer. A mente, aliás, estava confusa.

Era difícil recuperar a razão naquele breu, rompido apenas de leve por uma luz de vela que bruxuleava na cabeceira de uma cama ali perto. E, no canto mais iluminado, próximo à vela, dançava a sombra de um cabide, conforme o balanço da chama, onde estavam pendurados, segundo podia concluir pela forma das sombras, um sobretudo e uma cartola - e esta, até onde as densas trevas permitiam perscrutar, parecia ser toda a mobília do quarto sombrio. Uma cama, um cabide. E o pentagrama desenhado no chão.

Ela sentia o frio das pedras penetrar-lhe pela camisola e congelar-lhe as costas e a bunda. Aparentemente, estava sozinha, mas sentia uma presença no lugar, algo como o calor do hálito de uma fera ou a eterna perseguição de olhos ocultos. Qualquer som, por mais baixinho que fosse, reverberava com força nas pedras do quarto vazio - e este detalhe deixava a atmosfera ainda mais pesada. Ouviu um barulho de torneira enferrujada sendo aberta. As paredes guincharam quando a água começou a mover-se pelos velhos canos da construção, que há muito tempo não eram usados.

Imediatamente, e sem que pudesse controlar, os pêlos dos braços elevaram-se num arrepio. Pouco depois, o mesmo som agudo de torneira se repetiu, e o barulho de água cessou. Alguma coisa soou como uma porta rangendo e depois Pou!, a porta bateu. Passos ao longe. Stepstepstep, botas, cada vez mais perto, e a barulheira faria um desavisado crer que um exército inteiro marchasse no aposento ao lado.

Seus olhos já estavam acostumados com a escuridão, mas ainda assim o campo de visão era muito limitado pelo negrume em que o quarto estava afundado. Acompanhava todos os acontecimentos com os ouvidos. Depois de breve silêncio, ouviu um barulho de chave girando e uma porta abrindo, muito próximo de si, deixando um facho de luz entrar pela fresta, vindo do aposento ao lado. Um vulto passou pela porta, que foi então fechada, escondendo a luz e envolvendo tudo novamente no escuro.

Algo esquivou-se sorrateiramente pelo quarto, criando um suspense tão denso que até os pensamentos foram silenciados - mas falar em silêncio total é exagero, pois mesmo nos lugares mais inóspitos e improváveis o universo se encarrega de produzir algum ruído. Até mesmo no vácuo - e boto meu pescoço à prova contra todos os físicos do mundo - poderíamos ouvir este som tão aterrador que nos sai de dentro, e que agora soava como um tambor pelo quarto de pedra onde ela esperava o tempo vagaroso revelar-lhe o destino: Tumtum. Tumtum. Tumtum, o coração ribombava acelerado. Um leve vento acariciou-lhe os cabelos, e ouviu um barulho de fósforo sendo riscado.

Perto dela estava agachado um homem. Apesar do contorno mal delineado pela luz tênue que vinha da cabeceira e do fósforo aceso em suas mãos, era possível perceber que ele acendia outras velas dispostas ao redor do pentagrama. Logo, a luminosidade do quarto tornou-se significativamente maior - e lá estava, nitidamente, agachado perto dela um homem de meia idade, mãos apoiadas nos joelhos e oh meu D....

- Mas... eu conheço você! - disse a garota. O homem acenou positivamente com a cabeça, a barba grisalha brilhou na escuridão, mas não proferiu palavra.

- Quem...???? - tentou novamente a garota.

- Calma, querida, você vai recuperar a consciência aos poucos. Não há necessidade para apressar-se, já que o tempo não está correndo mais para mim ou para você.

- Como assim? Uh! Você pode me soltar? Me ajude...
Em resposta, o homem soltou uma gargalhada retumbante.

- HOHOHO! Não posso. Faz parte do ritual. Você precisa sair sozinha.
Ela se debatia, tentava livrar-se das amarras à força.

- É impossível. Parece que alguma coisa sobrenatural me prende a este chão gelado, a estas estacas.

- Hohoho! Com certeza, minha querida, o seu corpo está preso. O meu também está - grudado intimamente às pedras do quarto ao lado.

- Como é?

- Você precisa livrar-se dele. Saia do corpo, deixe a mente conquistar a independência merecida.

- Então você é...?
O homem acenou com a cabeça, interrompendo-a gentilmente.

- Sim, ectoplasma. Vamos, garota, não viemos até aqui por nada. Poucos são aqueles que têm a oportunidade de visitar o verdadeiro caos.

Algumas lembranças eram, dose a dose, injetadas novamente em sua consciência. Aos poucos, lembrou-se da vida verdadeira, dos estudos de ocultismo, das leituras proibidas, dos contatos com entidades de além-mundos, mas nunca, nunca em sua vida de ciência profana, nunca em seus exercícios obscuros, esteve tão perto de, ela mesma, ser uma criatura liberta do espaço e do tempo. Estava deitada no centro do pentagrama, e com um pouco de concentração poderia deixar seu corpo para trás, e vagar com a alma pela eternidade.

E este homem, o mestre taciturno de nariz aquilino, estava estranhamente bem-humorado no momento - provavelmente por contemplar os progressos da sua mais louvável discípula - e seus os olhos vibravam de orgulho enquanto observava um fluído branco insinuar-se pela escuridão, saindo vagarosamente dos olhos, do nariz e da boca da menina, para aos poucos ganhar a forma da dona - a verdadeira materialização de sua alma.

- Magnífico! Você evolui muito rápido. Eu mesmo demorei muito tempo para aprender as sutilezas do ectoplasma. Minhas primeiras manifestações eram aberrações disformes, longe de minha verdadeira aparência. A sua está perfeita!
O ectoplasma da garota sorriu com o canto dos olhos. Era difícil de controlar a própria forma, e alguns membros iam perdendo as características conforme ela perdia a concentração. Mas, mesmo assim, estava saindo-se realmente muito bem com sua forma etérea, aprendendo inclusive a controlar seus movimentos - e deixou que ela se movesse até a janela. Nevava lá fora, e algumas carroças tentavam encontrar caminho entre os acúmulos de neve.

- Uau! Onde estamos? Quando estamos?

- Quando e onde a Srta. quiser. Estas perguntas já não lhe servem mais, pois você já não faz mais parte da linearidade de eventos que aparentemente constitui o tempo. Devagar, com mais experiências deste tipo, você vai aprender a viver no caos, que é essência do próprio universo, e a vida comum já não lhe fará mais sentido.

- Você quer dizer... estou fora... além dos limites dos meus 5 sentidos?

- Sim, teoricamente a Srta. está. - respondeu-lhe o homem num suspiro. Mas ainda não aprendeu a ver o mundo dessa maneira. Os teus sentidos ainda percebem apenas o que querem perceber.

A garota, intrigada, continuou a andar pelo quarto. Passou as mãos pelas paredes e sentia a própria vida pulsando no fundo das pedras ancestrais. Não conseguia entender por que este quarto, a cama, os odores, porque tudo isto era tão familiar - como se um pedaço de sua alma estivesse preso entre aquelas 4 paredes. O ambiente todo lhe causava uma sensação muito profunda de nostalgia, de algum momento já vivenciado. Achou por bem contar isto ao homem:

- Tenho uma sensação esquisita. Me sinto muito familiarizada com este lugar.
O mestre sorriu.

- Não há nada de errado nisto. Este era o seu quarto.

- O meu quarto?

Estralando os dedos, o homem fez as velas queimarem com mais voracidade, o que aumentou a luminosidade. Então, ela reparou em algo que lhe havia passado despercebido: na cama, uma garotinha dormia um sono infantil, numa serenidade própria da consciência limpa que apenas as crianças possuem. Era ela. Ela própria.

Um século atrás, em outra vida, em outro corpo, a mesma alma. Ambas dividiam a mesma alma, e este pensamento perturbou profundamente a garota do pentagrama. E perturbou também a pequena garotinha, que acordou de sobressalto com os olhos esbugalhados e insanos fitando a escuridão.

Autor: Gustavo Matte - estudante de Letras (UFRGS)

Capítulo sobre olhos e janelas

Cá o agora. Ora o acúmulo da hora. As cortinas da visão embolorando a nitidez das formas, embolotando-se em rugas – rendas – impermeáveis à luz. As pálpebras da casa cerradas, como que para nunca mais; não querem decerto expor as cataratas impregnadas no que outrora era o mais vivo cristalino: receptáculo da poesia nascente, quando os grilos noturnos calavam e os primeiros acordes do galo convidavam “acordem, lá vem o artista da aurora, venham apreciar as cores de sua tela, abram as suas almas, abram as suas janelas”. Apesar das dezenas de anos, lembro em detalhes do que testemunhei aqui ainda jovenzinha.

Senhora partiu, sem hora para voltar, também nunca a teve para a ida. Levou junto a vida; as cortinas começaram a pesar – depois de um mês – o alvo olhar partido de meu tio acusava sua providencial despedida... Desbotava-se gradativamente o alvorecer, até o dia em que as venezianas não encontraram razão e a casa adormeceu junto com o tio. Sob uma porção de terra e sobre uma porção de sonhos esfarelados descansou o cadáver da saudade.

Desta feita aprendi que a saudade pode ser algoz de si mesma: encontrei aquele apelo em letras sinceras e sem prumo, um pedido que amarelou na gaveta da cômoda. Eu não conseguiria lê-lo até o final, os traços dificultosos embaralhavam-se. Apenas a última frase estava legível “venha para casa, Senhora, por favor” – solucei – meus olhos cobriram-se por uma tímida cortina líquida salgada que goticulou; uma gota para cada letra e cada uma se desmanchou. Foi uma poeira em minúsculas partículas dançantes que seguiam o rastro de um fino raio de sol – o único dentro da casa – enfiou-se por um buraquinho no vidro que apareceu naquela manhã de despedida: ao passar pela porta do quarto, ouvi o som delicado de vidro se partindo, percebi um buraquinho na vidraça e a imobilidade de meu tio na cama.

Entrei movida pela curiosidade; peguei a mão de meu tio que gelou em três segundos, ele tinha acabado de sair por aquele buraquinho. Eu fiquei com o silêncio e a certeza de que o pedacinho da vidraça foi a única lágrima que a casa chorou. Aquelas palavras eram o resto de alma de meu tio que ele trancou na gaveta como havia se trancado na memória, agora livres saíam do sepulcro pelo mesmo caminho que ele saíra. O fio dourado e brilhante foi-se apagando com os farelos da última frase se indo por sua linha. Meus olhos já secos, hipnotizados, não piscavam, e, quando o espetáculo no lado de dentro da casa terminou, foram levados a acompanhar o que aconteceria do lado de fora espiando pelo buraquinho do vidro. Senhora.

Qualquer um diria que ainda era vivo e alegre o jardim, com suas flores de tantas cores, mal saberia que era regado com lágrimas de meu tio. Eu olhava para ele por aquela fenda e em algum ponto entre as flores a vi. Foi por um instante, não sei por quanto tempo, à sombra do crepúsculo, meus olhos congelaram naquela imagem: ela nunca havia dado notícias, nada se sabia, nem o porquê; o que acusava sua saída voluntariosa era o sumiço de uma pequena valise e alguns pares de roupas, nada mais.

Foi com o passar dos dias sem volta que sua ausência tornou-se certeza. Agora ela estava ali, entre as flores salgadas do jardim, olhava para a varanda. Eu não sabia dos laços, do afeto profundo daquela amizade entre eles, dos sentimentos que extrapolavam os limites do tocar, do olhar – se ela, um dia, partiu sem avisar, naquele fim de tarde eu encontrava as pistas de suas razões. Ela estendeu os braços e vi meu tio descer as escadinhas da varanda. Ela atendeu seu apelo. Quando consegui fechar os olhos por dois segundos não mais os vi. Voltei o olhar para dentro da casa, era lúgubre e fria. Na epiderme poeirosa da vidraça tatuei seus nomes como eu lhes chamava “tio e Senhora”; naquela noite saí sem avisar a casa.

As lendas preservaram a solidão da casa que agora me encara pálida: toda noite na varanda brilha uma luz tênue. Os poucos vizinhos que moram à distância ao perceber o fato, acreditaram que pudesse ter sido invadida e foram verificar; ninguém conseguiu destrancar a porta ou as janelas e também não havia lâmpadas na varanda, acabaram por acostumar-se com uma luzinha acesa até a hora de dormir. Ao entrar na vila ouvi essa história pela boca de um menino e de uma menina que, com seus pequenos olhos arregalados, ainda lembrou as flores intactas e coloridas do jardim que ninguém cuida. Trouxeram-me até o portão, incrédulos que eu morei ou moraria aqui novamente, deixaram minhas malas e saíram correndo de pavor – decerto me tornarei a velha bruxa da vila.

Agora nós; eu quero vê-la, casa de minha infância, quero que me veja; vim abrir nossas janelas, desempoeirar nossas almas. Entro pela porta lateral, a mesma pela qual saí, cheiro de terra, primeiro um bafo, depois uma friagem; as tábuas rangem com as pisadas, são cantos de boas vindas. Vou ao quarto que era do meu tio, a memória sépia induz meu olhar para o furo da vidraça e lá estao não somente o furo, mas os traços tatuados na poeira, intactos – é apenas nas suas linhas que ainda se pode ver o vidro. Abro a janela para que o dia entre novamente na casa. Sem dificuldades as venezianas desemperram e o clarão que invade o quarto é tão forte que fico cega por alguns instantes – mais tarde eu lembraria esse momento sentada na velha cadeira da varanda assistindo o azul celestial alaranjar no horizonte até enegrecer por completo – quando pude voltar a ver, a casa estava viva novamente, as cortinas dançavam esvoaçantes, as paredes tinham cor, a poeira sucumbiu à claridade e no vidro, novamente cristalino, os traços de seus nomes permaneciam gravados de maneira que só podiam ser vistos à luz do sol. Senti o aroma das flores do jardim que invadiu a casa perfumando todos os cômodos, passeei por todos, a casa inteira sorria.

Na varanda, adormeci, eu esperava receber uma visita iluminada, mas nem nessa noite, nem nas próximas eles viriam. Agora eu estava ali, a casa tinha a minha companhia. A casa que nas minhas lembranças parecia muito maior, grande demais para se viver sozinha nela.

Autora: Joyce Kwiatkowski - estudante de Letras (UFRGS)