terça-feira, 15 de setembro de 2009

Os dias – não tão angelicais – de Angel

Olá! Meu nome (atualmente) é Angel. Sou um bebê queniano de seis dias de vida, e gostaria de contar minha curta trajetória até aqui.

Fui concebida em um ambiente não muito familiar. Minha mãe passou esses últimos nove meses acolhida na casa de Mariah, sua amiga. Não tinha muito contato com seus familiares e, quando tinha, era-o para discussões. Meus avós diziam que ela “não devia ter se envolvido com aquele traficante, que só tinha se aproveitado e dado no pé”. Sinceramente, ainda não entendi o significado dessas palavras, mas, pelas várias vezes em que foram proclamadas, deve ser algo muito relevante.

Nasci naquele mesmo quartinho em que minha mãe estava morando, Mariah foi quem fez o parto. Foi estranha a sensação daquele novo mundo. E, quando quis refugiar-me nos braços de minha mãe, ela não me aceitou. Não quis pegar-me em seu colo, não quis dar-me de seu alimento. Fui acolhida por Mariah, que também tem uma criança. Um bebezinho muito querido, por sinal, pois não se incomodava quando eu bebia do leite que a ele deveria ser destinado.

Eu estava muito envolvida com Mariah. Ela me chamava de “Anna”, e transmitia-me uma ternura muito acalentadora. Eu queria permanecer com ela, e ela dizia que queria ficar comigo. Minha mãe, por sua vez, respondia que não iria mais incomodá-la, e que “ia dar um jeito na situação”.

Ao entardecer do segundo dia, minha mãe pegou-me no colo (pela primeira vez) e saiu correndo da casa, como quem fugia. Não sei para onde ela foi, mas sei que fui colocada por entre alguns arbustos de um bosque. Até achei interessante aquela paisagem, mas logo vieram insetos sobre meu corpo, e estava começando a escurecer. Minha mãe não retornava... Entrei em desespero. Por duas vezes, ouvi passos de pessoas próximas a mim, mas ninguém parou para saber do meu pranto. Em meio às minhas lágrimas, adormeci.

No dia seguinte eu estava faminta, mas Mariah não estava lá para me amamentar. Os carros passavam ao longe, eu podia ouvi-los, mas ninguém me ouvia... Até que senti um balanço, alguém havia me pego e estava me carregando. Fui largada novamente, mas dessa vez não por entre arbustos. Eu estava rodeada por calor e afeto. O problema era que não recebia alimento! Estava muito agradável a sensação de companhia e ternura, mas eu precisava da Mariah... Chorei... E meu pranto chamou a atenção de uma senhora que por ali passava. Seu nome era Sara, ela pegou-me em seus braços, muito emocionada, e levou-me a um estabelecimento onde várias moças vestidas de branco cuidaram-me e deram-me de comer. Foi delas que recebi meu novo e atual nome, “Angel”.

Nesse momento, olho pela janelinha desse quarto no qual estou (agora sei que esse lugar chama-se hospital e que as moças de branco são enfermeiras) e percebo que há muitas pessoas lá fora, algumas portando uns objetos que lançam luzes e outros objetos que ficam apoiados em seus ombros. As enfermeiras continuam a embalar-me e dar-me afeto. Mas eu ainda penso em Mariah... Sinto sua falta! Penso em minha mãe... O que será que aconteceu com ela? E por que tudo isso aconteceu comigo? E o que vai ser da minha vida agora? E penso, também, em quem poderá ter me tirado daquele bosque sombrio e cheio de insetos... Seja lá quem for, sou eternamente grata!

...

Eu sei responder as questões da Angel! Sou ‘quem’, há um mês, recolheu-a dos arbustos ao ouvir o seu chorar e colocou-a em meu leito, junto ao calor dos meus quatro filinhos. Eu gostaria de tê-la cuidado, mas sabia que ela não poderia ficar mais muito tempo comigo, sabia que Angel precisaria de leite materno e tudo que qualquer criança precisa para crescer e socializar-se. Por isso, deixei Sara recolhê-la, Sara levou-a ao hospital da cidade. Angel foi cuidada por enfermeiras, agora está para ser adotada (e olha que há muitas famílias interessadas pelo anjinho!). Fico feliz pela gratidão, mas não preciso de agradecimentos. Eu só fiz o que qualquer ser humano deveria ter feito ao ouvi-la chorar naquele bosque.

Mariah está preocupada... Tem medo de ser julgada como cúmplice de algo ilegal. Por mais que de sua parte estivesse apenas fazendo uma boa ação, teme ser mal interpretada, ser vista como quem manteve alguém refugiado (considerando as circunstâncias) em sua casa. A rejeição e sumiço por parte da mãe de Angel estão sendo averiguados; seu pai está sendo procurado pela polícia, agora não somente por tráfico, mas também por abandono de menor.

É delicada a situação moral da mãe da menina... Ela era adolescente quando começou a envolver-se com aquele rapaz. Ele era um moço atraente, viril, porém, um dos maiores mandantes do tráfico de armas no Quênia. Quando os pais da jovem souberam do envolvimento, disseram-lhe que não iriam responsabilizar-se por qualquer consequência. A jovem engravidou, sabia que não teria apoio paterno e foi buscar ajuda em sua amiga Mariah, que também estava grávida, mas já de quatro meses.

Mariah, compadecida, acolheu-a. Por várias vezes tentou conversar com a amiga, dizer que ela poderia tentar reconciliar-se com seus pais, mas a garota tinha muito medo. Resolveu ficar em seu refúgio. E, mesmo que Mariah se disponibilizasse a adotar a criança, ela não queria dar continuidade a essa história, tanto que fugiu com o pequeno anjo e abandonou-o. Hoje, ninguém sabe o paradeiro da jovem. E, se ela for encontrada, possivelmente precisará antes de um acompanhamento psicológico que de uma cadeia.

Para Angel, um futuro brilhante é possível. Mas espero que esse passado macabro não lhe tire as graças de uma infância feliz.
E agora, permita-me apresentar-me! Meu nome é Lessy, sou uma cadelinha vira-lata e vivo com a Sara.

Autora: Caroline Lazzari Manfio - estudante de Letras (UFRGS)

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