quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Os panos de Goya

Quando as pancadas soaram em sua porta, ele acabava de dar as últimas pinceladas no amarelo ouro da calça do homem.

— Señor Goya y Lucientes, perguntou em tom ameaçador o mais jovem dos guardas empertigados diante de sua porta.

— O que desejam, disse a sua vez o velhote de olhos mortiços.

Um safanão, seu pincel foi jogado no chão e ele, assustado, se apressou para o fundo do quarto. Meio escondido nas dobras do enorme cortinado, percebeu nos guardas os esbirros do santo tribunal. Teve medo, quis engolir o ar mas não tinha mais saliva. A luz batendo forte nos olhos dos visitantes manteve o homem livre por pouco tempo. Logo um dos policiais agarrou-o pelo braço e berrou que fosse com eles, que era aguardado no Santo Ofício. Francisco sentiu-se desfalecer. O medo tomou conta de sua velhice e ele amoleceu a resistência. Nada podia contra a presença grandiosa daquela corte.

Ao entrar no salão das autoridades ele viu seu quadro mais secreto exposto aos olhares indecentes daqueles homens. Imperceptivelmente recuou, mas um dos policiais empurrou-o sem modos para diante, com tal força que ele caiu diante de um dos nobres enfarpelados.

— Ora, ora, quem temos aqui: nosso artista libidinoso. Mas é um velho, um velhote muito feio...

Francisco deixou que a alma lhe caísse aos pés, baixou os olhos e ajoelhou-se diante do falante, em sinal de respeito. O inquisidor em pessoa... Seus olhos foram atraídos pelo quadro, pelo rosto adorado. O tempo passado só fez aumentar a nitidez da lembrança da alegria com que ela enlaçava seu pescoço, buscava sua boca, jogava para o lado o pedaço de tela que cobria sua nudez do fresco ar matinal. Somente a luz daquelas manhãs de final de inverno davam a carne dela o tom de porcelana de biscuit que ele tanto buscava. Então a cabeleira negra e rebelde saía de sua prisão atrás da cabeça da mulher e, copiosa, escondia os afagos dos amantes. Francisco fechou os olhos e quase podia sentir o perfume de sua pele, o som rouco da voz dela.

Aquelas bocas torcidas pela concupiscência eram indignas de qualquer participação naquele amor. Francisco torceu as mãos molhadas de suor, baixou a cabeça e suspirou longamente.

Seco de carnes, olhar acre, o inquisidor impacientou-se com o silêncio do réu. Repetiu a pergunta, mas Francisco fechou-se em silêncios. Não era ingênuo: imaginava as consequências de cada som saído de sua boca. Não podia trair segredo tão antigo. E ademais, estava bem informado, sabia que o Bonaparte francês livraria a Espanha daquele anacronismo sangrento. O tempo estava a seu favor. Bastava que se calasse.

Lembrou do primeiro encontro com ela, quando ainda não era a Maja, mas doña Maria Tereza Cayetana, esposa do duque de Alba, seu amigo.

A cabeleira crespa e negra, a alva pele, os olhos mouros por detrás dos cílios, Francisco foi atingido pelo amor louco na coincidência daquele encontro. O tribunal de velhotes não podia emporcalhar com a sua torpeza aquele segredo tão cuidado dos amantes... A Francisco a existência daquela corte lhe diminuía como ser humano.

Mas sem perceber a perturbação do pintor, o tribunal se preocupava com a escandalosa nudez da mulher. Exasperado com o nervosismo de Goya, Dom Antonio Llorente quis abreviar a sessão. Anunciou ao réu que retirasse o quadro imediatamente e fosse cobrir as vergonhas da mulher com os panos dos tecelões de Segóvia.

Dom Francisco de Paula José de Goya y Lucientes apoiou então a bengala no banco de madeira e de um salto agarrou o quadro da Maja, saindo abraçado com ele, quase correndo, pelos becos malcheirosos.

Conta-se que no dia seguinte Francisco embarcou no primeiro navio para Bordéos e nunca mais voltou à sua Espanha natal, deixando para Dom Antonio Llorente uma nova maja, coberta de panos e tão desnuda quanto a da véspera.

Dos amores de Francisco com Tereza souberam apenas os historiadores curiosos dos séculos seguintes.

Autora: Maria Regina Jacob Pilla - Estudante de Letras

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