quinta-feira, 11 de junho de 2009

A gaivota

Ela veio num adejo suave, contrastando com o pôr-do-sol sanguíneo que começava a debruçar-se pelo mar. As ondas cinza no movimento doce de vir e tornar, devir em uns farelinhos brancos de espuma e novamente acariciar o corpo lânguido da praia nua. Solitária e nua. E minha. E nua. E toda sabores tropicais. O vento serpenteava manso, feito um cão errante, sem dono. Ela, assim leve, assim à toa; vezes lépida, outras morosa em longos flutuares preguiçosos veio, e veio, e veio. Agora já se viam as perninhas, lisas e frágeis, feitas mais para vôo e nado do que para errar pelas dunas. E as asas bem abertas, para abarcar, como que num largo abraço, o peito do observador pouco distante.

Eu olhei para a gaivota que me olhava, meus braços dispostos para o choque. A tarde era, agora, um cálice de vinho que se derramava nas águas. Eu desejava ficar ébrio para sempre, mesmo que fosse em uma velha fotografia. Por que Deus não poderia me fotografar? E depois de muito tempo, quando eu velho, um anjo me mostraria a foto e diria: Olha! Este foi aquele dia em que tu bebeste quase toda a água do oceano, achando que era vinho caído das nuvens! Imagino também o anjo falando: E esta aqui foi no momento exato em que tu e ela colidiram! Que precisão! Lembras? Foi o melhor dia da vida dela e o teu também. Mas lá na praia, agora, pouquíssimos segundos faltavam para que ela sentisse meu peito apertado contra o seu, para que eu finalmente soubesse como é a plumagem de uma gaivota!... Então, afinal, tudo foi uma única explosão de vontades. Seu pequeno corpo apertado entre meus braços, o coração pequenino, tão quente, quanto palpitava vivaz! Imagino que ela tenha sentido meus braços como um ninho que eram, realmente, após tanto aguardar quem os unisse num abraço. Senti as confortantes bicadas miúdas em meu rosto, as asas abertas em cruz, guardando o meu próprio peito com afeição. Ela e eu, a praia, a tarde e o sangue.

Ficamos assim, tendo um ao outro num instante que ofuscava qualquer outro momento ou prêmio conquistado, qualquer elogio solícito ou gratidão verdadeira. Toda a graça do mundo se aninhava entre mim e ela, que era uma cruz alva sobre o meu corpo. As penas, como eram delicadas e o corpinho frágil... Eu temia machucá-la, ainda que ela, talvez nada receosa, tanto se achegasse a mim. Finalmente, minhas mãos acariciaram a plumagem, mas não mais que alguns segundos fugazes, pois logo, meio depressa, meio tristonha, ela afastava seu coração saltitante de mim. O bico voltou-se primeiro para baixo, como um pedido de desculpas, e em seguida apontou para o horizonte. Ela bateu as asas... Senti o calor deixar meus braços, meu peito, meu próprio regaço. Então, foi com mais um de seus alegres pairares que ela se afastou, até confundir-se com o poente que já se reclinava pra o sono além-mar. Até hoje espero a gaivota e sinto frio na brisa que percorre a ilha de Santa Catarina. Será que se eu pedisse para ver a foto aquele anjo deixaria? Quem sabe se quando eu estiver mais velho sofra de amnésia e não possa mais reconhecer sequer eu mesmo? Ele poderia, talvez, retirá-la de uma singela gaveta da escrivaninha de Deus. E lá estaríamos nós, naquele retrato em sépia natural do vinho tinto do céu, abraçados vivamente. Estaríamos então, um enlaçado ao outro, eu e minha mãe, eu e minha irmã. Eu e a namorada que foi embora... E a outra que ainda não veio. Seríamos apenas nós, que tivemos de nos despedir tantas vezes. Eu e a gaivota.

Autor: Gabriel Villamil Martins - Estudante de Letras (UFRGS)

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