quarta-feira, 8 de julho de 2009

Carmesim

— É ela, doutora. É Carmem – finalmente disse o homem, após vários minutos de silêncio.

Roberto estava com os cotovelos apoiados à mesa. Os dedos das mãos, entrelaçados, cobriam-lhe parcialmente o rosto.

— Ela foi ao meu apartamento há três dias, num fim de tarde. Queria conversar. Estava nervosa.

Ele olhou pela janela. O sol já se punha. A vermelhidão do arrebol tomava conta da sala, conferindo sua uniformidade aos objetos ali expostos. Já não lhe parecia um ambiente tão caótico, como em suas experiências anteriores. Sentia-se mais disposto.

— Disse-me que queria morrer. Queria que eu a ajudasse. Não podia esperar mais – respondeu o homem, olhando fixamente para sua ouvinte, sem, no entanto, parecer enxergá-la.

Roberto finalmente deixa seu rosto à mostra, repousando as mãos sobre os joelhos.

— Ela disse que, se eu realmente a amasse, deveria ajudá-la a pôr um fim em tudo. Disse que eu teria que matá-la, com minhas próprias mãos. Não. Não foi ela quem disse, mas a voz dela. A voz de Carmem me pediu. Suplicou. Após isso, ficamos nos olhando, em pé, no meio da minha sala. Não sei dizer quanto tempo se passou, mas sei que nunca havia observado tão detalhadamente o rosto de minha amante. Aquela expressão que Carmem nunca me havia mostrado – ou, talvez, nunca tivesse eu percebido até então – me fez livre de qualquer dúvida. Carmem queria morrer. Carmem precisava morrer. Não importava o porquê.

Uma breve pausa. Dois ou três minutos. Roberto, com os olhos muito abertos, numa expressão quase infantil, de pura inocência, prossegue:

— Vendo-a naquele estado, não tive escolha. Eu a amava. Fui à cozinha e peguei a faca mais afiada que pude encontrar. Quando voltei à sala, lá estava Carmem, imóvel, olhando-me tal qual quando sua voz me fizera a súplica. Sim, eu a amava. Aproximei-me dela, abraçamo-nos e, passando meu braço por detrás de seu pescoço, delicadamente, fiz a lâmina correr sobre sua garganta. Eu a abraçava, mas ela já não me abraçava mais. De Carmem não verteu uma única gota de sangue, entretanto a luminosidade sanguínea que se desprendia daquele fim de tarde fazia-se passar por tal ao cobrir seu corpo inerte, tendo-o eu já o deitado ao chão.

O homem cruza os braços sobre o abdômen, reflexivo, distante.

— Após isso, doutora, não mais podendo suportar ver Carmem como estava, saí de meu apartamento, deixando-a só. Passei estes últimos dois dias, também só, em um quarto de hotel barato, pensando nela e somente nela.

Vendo, através da janela, que o arrebol já se ia, Roberto, suspirando, levanta-se. Estava satisfeito. Bastava.

— Já não tenho mais nada a dizer, doutora. Sinto-me bem. Agora, só tenho vontade de voltar para meu apartamento. Quero ver Carmem. Ela está só – diz Roberto, num sorriso, encaminhando-se à saída, sem olhar para a mulher.

A doutora, sozinha na sala, deixa-se refletir por algum tempo. Já escurecia. Precisava terminar logo. Afastando de si o fantasma das loucuras de seu paciente, preenche a última ficha do dia: Roberto Palhares. 42 anos. Décima nona consulta. Pela quinta vez, pensa assassinar sua amante fictícia, a quem chama de Carmem. Esquizofrenia. Sem progressos desde a décima segunda consulta. Tratamento intensivo. Aumentar dosagem da medicação.

Autor: Cristhian Matheus Herrera - Estudante de Letras (UFRGS)

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