quinta-feira, 2 de julho de 2009

O céu de Mendoza

Era apenas mais uma manhã tranqüila na pequena cidade de Mendoza. O sol já surgia atrás dos morros dando ao céu um tom de azul mágico que todos os moradores se orgulhavam em dizer que era exclusivo do céu mendoziano. Todos exceto um. Marta Chevrete. Para ela não havia nada de mágico naquele céu.

Marta era uma mulher da qual não se podia esperar bom humor. Abandonada pelos pais ao nascer, fora adotada por uma senhora perversa que transformou sua infância em um inferno, obrigando-lhe a trabalhar desde pequena. Enquanto as outras crianças brincavam nos parques, Marta estava na rua trabalhando. E não eram raras as vezes em que ela fugia o mais rápido possível sendo perseguida pela dona da bolsa que carregava em suas mãos. Aos quinze anos, brigou com sua mãe adotiva e saiu de casa para ganhar o mundo. Ou seria apanhar dele?

O tempo a transformou em uma empregada doméstica irritada com a vida. Trabalhava muito e ganhava muito pouco. Morava em um pequeno casebre de apenas um cômodo que conseguira comprar depois de anos de esforço. Mas o que mais a incomodava era a solidão. Não tinha absolutamente ninguém. A única família que um dia teve fora a megera senhora da qual nem queria se lembrar. A única coisa que a fazia sorrir eram as crianças. Ao vê-las brincar, Marta alimentava a infância da menina que existia dentro dela e que não pudera ser libertada. Mas, depois do sorriso, vinha o choro. Em mais um trágico episódio de sua vida, foi agredida violentamente quando grávida, por um de seus patrões, e acabou perdendo o bebê.

Naquela manhã Marta seguia suas atividades rotineiras. Acordou cedo, comeu um pedaço de pão e foi para o trabalho. Foi apenas mais uma manhã de tedioso e doloroso trabalho doméstico. Talvez tenha sido ainda pior, pois nem almoçar ela almoçou para poupar um pouco de dinheiro. À tarde, as coisas ficaram ainda piores. O calor aumentava e a castigava enquanto limpava as janelas de uma mansão, espiando uma vida feliz que sempre sonhou em ter.

Acabado o expediente, ela tinha uma longa caminhada para casa. Andava agora cabisbaixa pelo centro de Mendoza arrependida de ter pulado o almoço, pois o calor escaldante sugava suas energias. Parou numa esquina e ergueu a cabeça para atravessar a rua. Do outro lado da calçada uma loja a chamou a atenção. Era uma loja chique focada na alta sociedade, onde, com certeza, não era o seu lugar. Mas algo a chamava para dentro da loja. Não sabia explicar, era uma vontade incontrolável. Parou na frente da vitrine e ficou observando os vestidos finos que nunca ia conseguir comprar. Ao olhar para eles, pensou na falta de sorte que tido ao nascer. Podia ser ela ali dentro provando e comprando tudo o que tinha vontade. Provar? Por que não? Só porque não tinha dinheiro para compra-los não significava que não podia experimenta-los.

Entrou na loja. Sua presença atraiu olhares desconfiados. O que uma moça vestida daquele jeito estaria fazendo numa loja dessas. O segurança se aproximou dela. Mas naquele momento, os vestidos, a loja, o segurança, já não importavam mais. Estava paralisada. À frente, via sua imagem no espelho. Morena, baixo, olhos claros, um pouco acima do peso, brincos de ouro, colar de diamantes. Ela não conseguia acreditar no que via. Não acreditava na semelhança que tinha com aquela mulher. Eram idênticas. Marta sentiu uma emoção inexplicável ao ver uma criança rodeando a moça. Aquela criança fazia Marta lembrar de seus raros que guardava de sua triste infância.

- Pabla Mariana Chilote – respondeu a mulher, que fazia seu cadastro na loja – 28 de abril de 1974.

Ao ouvir a resposta que a moça dera para o atendente, Marta não conteve o choro. Sim. 28 de abril de 1974. Aquela era sua data de nascimento. Um filme passou na sua cabeça. Sua infância difícil, sua vida dura e o fato de que sempre teve que enfrentar tudo sozinha. Não tinha ninguém.

Talvez não fosse um filme que tivesse passado em sua cabeça, mas um sonho. Pois quando voltou a si, estava deitada no chão da loja. Tinha desmaiado.

- A senhora está bem? – perguntou o segurança.

Marta se levantou rapidamente para ir conversar com Pabla. Mas ela não estava mais ali.

- A senhora deve se acalmar. Ficou um bom tempo desacordada.

Sem ouvir direito o conselho do homem, saiu correndo para rua para ver se alcançava a misteriosa mulher. Olhou para todos os lados e não tinha nem sinal dela. Mas não estava triste. Pabla Mariana Chilote. Numa cidade como Mendoza, sabia que o nome era suficiente para encontrá-la.

Acalmou-se. Já estava quase anoitecendo e ainda tinha uma longa caminha até sua casa. Mas não caminhava mais cabisbaixa. Andava de cabeça erguida com um sorriso que poucos tinham o privilégio de ver. Estava decidida que no dia seguinte ia acordar cedo para procurar a mulher da loja. Mas havia algo de estranho naquela tarde. Marta não sabia explicar, mas algo estava diferente. Foi então que olhou para cima e viu o céu num colorido que jamais havia visto em toda sua vida.

Autor: Felipe Guidotti Pezerico - Estudante de Engenharia de Produção (UFRGS)

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